Sobre a imersão em histórias de realidade simulada

Karen Naomi Aisawa
8 min readJan 7, 2021

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Cena inicial do MV ‘Run’, do BTS.

Nestas últimas semanas, fiquei responsável, enquanto estagiária do Grupo de Pesquisa Comunica - inscrições linguísticas na comunicação, por subir os vídeos do trabalho final da disciplina “Discurso literário: criação, edição e consumo” no canal de Youtube do Grupo.

Se você tem acompanhado as publicações aqui no Medium, deve se lembrar de que o trabalho final desta disciplina optativa consistia em propor uma reedição de um objeto editorial literário já existente no mundo. Àqueles que acompanharam o meu raciocínio ao longo desses 2 meses e meio, já devem estar cansados de me ouvir falar (ou escrever) sobre a Agatha Christie, mas dado o fato de ser esta a última postagem para esta disciplina e, portanto, constituir um fechamento para as reflexões iniciais e provisórias aqui desenvolvidas, permitam-me falar brevemente sobre a minha proposta de reedição, que você pode conferir abaixo:

De início, gostaria de abordar aqui a minha relação com o box escolhido para “brincar de editora” (do feminino de editor, não da instituição que publica): tinha-o há tanto tempo (desde a 24a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2016) guardado no armário que havia até me esquecido dele! Recuperá-lo agora, em 2020 (e 2021), para esta disciplina, me trouxe à memória momentos nostálgicos de quando viajamos para São Paulo no ônibus alugado pela escola durante o meu último ano no Ensino Médio, de quando encontrei o estande de uma editora italiana e troquei umas palavras com as moças em italiano (na época, eu ainda fazia o curso), de quando consegui comprar diversos volumes de meus mangás preferidos com desconto, de quando me apaixonei à primeira vista por esse box lindo da Agatha Christie, de quando me desliguei do resto do mundo enquanto mergulhava na experiência heterotópica que é a leitura das obras dessa Mulher (e de qualquer obra literária, convenhamos)…

É curioso falar de heterotopia agora, no final desta disciplina, quando ela foi justamente o assunto da minha primeira postagem aqui no Medium, referente à primeira aula da disciplina “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza. O conceito, pensado por Michel Foucault em De outros espaços, pode ser descrito, recuperando parte da minha primeira postagem, como

[…] uma utopia, mas que, ao contrário desta, se realiza fisicamente no mundo e, mais que isso, proporciona-nos uma experiência, um lugar no qual somos atraídos temporariamente para fora de nós mesmos, para uma realidade que só pode ser vivida nesse espaço heterotópico e naquele período de tempo. É também um conceito que carece de um conjunto de crenças compartilhadas e cultivadas que justificam a existência desse espaço, reconhecido mesmo por quem não cultiva tais práticas.

Ao trazer esse conceito para as nossas aulas, Luciana propôs ser a experiência literária justamente o que Foucault chamou de experiência heterotópica, uma vez que que as obras literárias, como já dissemos em postagens passadas, não possuem um objetivo específico para além de ser o que são, ao contrário de obras acadêmicas, por exemplo, que objetivam explicar, esclarecer, fazer pensar, ou mesmo obras didáticas, que objetivam ensinar, instruir, entre outros.

Mas apesar de concordar com o fato de que todas as obras literárias proporcionam a seus leitores uma experiência heterotópica que nos faz sair temporariamente para fora de nós mesmos, acredito ser interessante pensar em gradações dessa experiência, no sentido de que não terei o mesmo prazer de ler algo que gosto quando leio algo de que não gosto. Acredito que hajam diferentes níveis de “aproveitamento”, ou, na linguagem atual, “imersão”.

E é sobre imersão, ou simulação, que gostaria de falar nesta postagem. Em posts passados, especialmente naqueles referentes à disciplina “Literatura e mercado editorial”, falei bastante sobre narrativas transmídia, em especial, sobre o BTS Universe, objeto de minha pesquisa de iniciação científica e de trabalho de conclusão de curso, ambos desenvolvidos sob a orientação da profa. Luciana. Para aqueles que não sabem o que é narrativa transmídia, recupero novamente a definição dei na minha segunda postagem aqui na plataforma, na qual caracterizo-a como

uma espécie de narrativa quebra-cabeça, na qual cada um desses diversos materiais que compõem a história, partes fragmentadas da narrativa, atuam como peças de um quebra-cabeça que estão espalhadas em diversas plataformas e, portanto, para fazerem sentido, para ser vislumbrada em sua totalidade, é preciso alguém, neste caso, o fandom ARMY (fandom do BTS), para coletar e reorganizar as informações, ou seja, as peças, de modo a atribuir sentido e dar origem à narrativa em sua totalidade. Deste modo, é um tipo de narrativa que toma como base a cultura participatória do fandom e a interatividade entre eles. Assim sendo, a interação é um elemento essencial para o sucesso desse tipo de narrativa transmídia, atuando como uma espécie de cola que junta todas as peças.

Em outras palavras, trata-se de um tipo de narrativa típica do atual período, que exige do leitor engajamento e habilidades de busca, de conectividade, de sociabilidade, de teorização, entre outros, a fim de garantir a ele uma maior imersão nessa história que é, bem ou mal, construída em grande parte por ele e por outros como ele.

Durante o percurso desta disciplina, me orgulho de dizer que consegui acompanhar todas as reflexões semanais de todos os alunos sem deixar nenhum para trás, ato que me proporcionou acompanhar bem de pertinho os raciocínios e os interesses de cada um, bem como as mudanças e desafios com os quais se depararam ao longo desta jornada até resultarem em projetos de reedição muito interessantes. Sério, gostei de todos eles e do modo como cada um deles evidenciou certos aspectos do literários. Mas para esta postagem, a proposta é que eu escolha e comente apenas um (eu até poderia comentar sobre cada um, mas eu já falo demais, então vou poupá-los disso) projeto de reedição (que não o meu, claro), ao que me vi instigada a falar sobre o projeto de Thiago Carvalho Gonçalves sobre o objeto editorial Drácula, que você confere abaixo:

O que me chamou a atenção na proposta de Thiago foi justamente a atenção que ele direciona aos mais diversos gêneros discursivos mobilizados para a construção da história de Drácula — a saber: diários, notícias de jornal, cartas, memorandos, telegramas, bilhete, diários fonográficos e nota — , que são simulados dentro de um único mídium: o livro em formato códice. Em seu vídeo, Thiago também argumenta que essa opção de publicação não é, de modo algum, ruim, mas que acaba por quebrar a imersão de uma história que poderia ser apresentada (ou descoberta?) de modo muito mais envolvente ao fazer o próprio leitor interagir com os objetos e depreender a trama por meio deles. E apesar de achar uma proposta de reedição interessante, Thiago também pondera sobre as dificuldades de concebê-la fisicamente, em grande parte, devido ao preço elevado de sua produção, que acarretaria em um preço de venda absurdo.

Ver a proposta de Thiago me fez lembrar de uma obra interessantíssima que conheci em 2019, intitulada S., de J. J. Abrams e Doug Dorst, e que apresenta uma singular problemática de autoria, como apresentado em artigo de Luciana Salazar Salgado e Vitoria Ferreira Doretto. Vamos ao curioso objeto:

A princípio, o objeto editorial S. é uma caixa preta com um lacre — emulação de um selo antigo com a letra ‘s’ em estilo gótico –, na frente da qual figuram os nomes dos autores acima citados, com a reprodução de uma pintura de um navio antigo; um grande ‘S’ em fonte sugestiva de um texto medievo toma toda a extensão da sua capa, repetido no selo da lombada. Quando esse lacre é rompido, descobrimos que a caixa abriga um exemplar ‘de biblioteca’, antigo e gasto, de um romance intitulado O Navio de Teseu, última obra do escritor V.M. Straka, um homem enigmático cuja vida e identidade misteriosas geram discussões entre os especialistas em literatura há anos. Nas suas páginas encontramos anotações ‘manuscritas’: uma conversa entre dois leitores, Eric e Jennifer, que trocam informações pelo exemplar deixado num cantinho de uma biblioteca… Esses são os ingredientes que instituem ficcionalmente a interessante problemática da autoria, que ganha sucessivos contornos: quem é leitor de que texto? Quem é personagem e quem é autor? (SALGADO; DORETTO, 2018, p. 2).

Mas para além disso, o livro contém também, inseridos em determinados pontos das páginas, diversos anexos (recortes de jornal, cartões postais, cartas, mapas, etc.) que ajudam-nos a (re)constituir a história de Eric e Jennifer, como observável na foto abaixo:

Fonte: Café da Alice.

E isso tudo sem mencionar os objetos editoriais externos a esse conjunto de materiais, mas que também compõem a história simulada nesses mídiuns, como as redes sociais de “Jennifer” e de “Eric”, por exemplo.

E foi justamente o contato com um objeto tão curioso como o S. que me levou a estudar o BTS Universe mesmo sem nem saber, à época, o que era narrativa transmídia. Desde então, venho me interessando por objetos desse tipo, que simulam a realidade e te levam para dentro da narrativa com o objetivo de te fazer completá-la e compreendê-la. Acho que agora já deu pra entender o porquê de eu ter escolhido falar do projeto do Thiago, né?

Bem, acho que foi o suficiente por hoje. Apesar de ter me estendido mais do que o previsto (como sempre, né?), creio ser um bom fechamento para a jornada pretendida por esta “disciplina”, um fechamento cheio de nostalgia e sentimento, bem raro nas minhas escritas. Sou péssima falando de mim, principalmente das coisas que sinto, mas é evidente que escrever um post por semana por cerca de 4 meses (pois estou escrevendo aqui no Medium desde o início de setembro para a disciplina de Literatura e mercado editorial) me ajudou a me soltar um pouco. Ainda assim, não costumo escrever muito fora das atividades acadêmicas, então não sei como ficarão as postagens aqui na plataforma. Talvez eu escreva ocasionalmente, quem sabe?

De todo modo, deixo aqui meus agradecimentos a todos que participaram desta jornada e também àqueles que dispuseram de seu tempo para ler minhas postagens. Significa muito para mim!

Muito grata e… até qualquer dia!

Ps: Sinta-se à vontade para conhecer as outras propostas de reedição, estão incríveis!

https://youtube.com/playlist?list=PLapZALOsYyvj45yAW3eQfG_al8PIfncHl

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina optativa “Discurso literário: criação, edição e consumo”, ministrada por Luciana Salazar Salgado.

Referências bibliográficas:

SALGADO, Luciana Salazar; DORETTO, Vitória Ferreira. Implicações entre mídium e paratopia criadora: um caso de autoria exponencial. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 40(2), e40988, 2018. Disponível em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/view/40988>. Acesso em: 07 jan. 2021.

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Karen Naomi Aisawa

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