Discurso literário e a produção de valor
Para Dominique Maingueneau, dentre os inúmeros discursos que circulam no mundo, existe uma classe especial a que ele chama discurso constituinte, que nada mais é do que um discurso que se põe no mundo como originário, isto é, como se não houvesse nada antes dele e, portanto, é inquestionável; não precisa se explicar, pois a sua própria existência já é justificada. Trata-se, assim, de um discurso autoritário, logo, exclusivo, uma vez que apenas alguns indivíduos e/ou instituições, coletivos, estão autorizados a portá-lo.
Um exemplo desses discursos é o discurso literário e, podemos dizer, de modo mais amplo, o discurso da Arte (com A maiúsculo), uma vez que se colocam como inalcançáveis, inquestionáveis. Muito se discute sobre o que pode ser considerado Arte, mas poucos se questionam sobre o que é Arte ou mesmo se a Arte realmente existe. O mesmo com a Literatura. Este último caso é, inclusive, evidenciado em artigo de Pierre Bourdieu (traduzido no Brasil em 2018), intitulado Uma revolução conservadora na edição, no qual, ao analisar 61 das diversas editoras da França no período de julho 1995 e julho de 1996, bem como seus posicionamentos no campo editorial e os editores por elas responsáveis, destaca o fato de que, a despeito das várias revoluções constatadas no campo editorial, ele ainda se mostra conservador e acrítico em relação à própria noção de literário, que não é posta à prova em nenhum momento de sua pesquisa.
Ainda seguindo nessa linha, gostaríamos de trazer para a discussão o objeto de nossa pesquisa de Iniciação Científica, intitulada “Mídium e mundo ético: um estudo das relações entre espaço canônico e espaço associado na criação multiplataforma do BTS Universe” (processo nº 2019/23725–7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)): o BTS Universe. Trata-se de uma narrativa fictícia criada pelo grupo de pop sul-coreano BTS conjuntamente com a empresa que os gerencia, a Big Hit Entertainment, narrativa esta que tem como protagonistas personagens inspiradas nos sete membros do grupo.
A história, que começou com a publicação do clipe musical de I Need U, em 29 de abril de 2015, se expandiu consideravelmente ao longo dos anos. Ainda em andamento, o enredo converge em si uma série de materiais de diferentes gêneros discursivos e espalhados em diferentes plataformas (sejam elas online ou não), caracterizando o que nós tomamos como uma narrativa transmídia (MASSAROLO, 2013), isto é, uma espécie de narrativa quebra-cabeça, na qual cada um desses diversos materiais que compõem a história, partes fragmentadas da narrativa, atuam como peças de um quebra-cabeça que estão espalhadas em diversas plataformas e, portanto, para fazerem sentido, para ser vislumbrada em sua totalidade, é preciso alguém, neste caso, o fandom ARMY (fandom do BTS), para coletar e reorganizar as informações, ou seja, as peças, de modo a atribuir sentido e dar origem à narrativa em sua totalidade. Deste modo, é um tipo de narrativa que toma como base a cultura participatória do fandom e a interatividade entre eles. Assim sendo, a interação é um elemento essencial para o sucesso desse tipo de narrativa transmídia, atuando como uma espécie de cola que junta todas as peças.
Confira o MV de I Need U, que dá origem ao BTS Universe:
A obra em estudo reúne, assim, diversos tipos de materiais, como por exemplo, clipes, curtas, blog, Webtoon, pôsteres, entre outros.
Além disso, o universo multiplataformas do grupo também referencia e até mesmo se “apropria”, incorpora em sua narrativa, obras que fogem à autoria do BTS, como por exemplo a obra Demian, de Hermann Hesse, o conto italiano La città di Smeraldo, o livro Jung: O mapa da alma: Uma introdução, de Murray Stein, entre outros. Por fim, a obra se constitui, ainda, de outros materiais essenciais de autoria de terceiros: as inúmeras e mais diversas teorias de fãs, publicadas em forma de vídeos, comentários, postagens em blogs ou quaisquer outras redes sociais, que são, afinal, elementos cruciais para o sucesso do que se chama narrativa transmídia.
A atenção a esse objeto de estudo tão diverso suscitou e ainda suscita diversas questões do ponto de vista editorial, dentre as quais destacamos, durante comunicação oral apresentada no dia 22/09/20, na ocasião do VII Selit, a seguinte reflexão acerca da nomenclatura (ou categoria) normalmente atribuída ao BTS Universe: considerando sua natureza majoritariamente (mas não exclusivamente) digital e, mais especificamente, online, bem como sua dispersão em multiplataformas e hipertextualidade, características da narrativa transmídia, podemos considerar o BTS Universe como literatura digital, tal como a entende Rocha (2014, 2019)?
Na referida apresentação, constatamos que, apesar de possuir todas as características principais da literatura digital, “tais como a hipertextualidade, a linearidade prejudicada pela fragmentação, o estado de incompletude e mutabilidade do texto, a interatividade, o caráter efêmero dos textos, além do fato de não ser publicada por editoras, não ser produzida por autores que se identificam como autores e não circular em ambientes literários”, as narrativas transmídia são referidas, na maioria das vezes, não como um tipo de literatura, mas como entretenimento e, após uma breve análise acerca da definição de “entretenimento” oferecida pela Wikipédia — escolhida por ser representativa do meio digital no qual circula, predominantemente, o objeto de nossa pesquisa e também por seu caráter colaborativo, presente também na narrativa transmídia — , percebemos tratar-se de uma disputa pelos valores implicados em cada um dos termos: a ideia mítica da literatura como Arte, um bem a ser contemplado individualmente, um ato extremamente valorizado socialmente versus a ideia mercadológica do entretenimento, cujos objetos são taxados como produtos de consumo público com grande apelo comercial e por isso, ou também por isso, são muitas vezes tidos como supérfluos, indignos do status elitista de Arte e de Literatura. Interessante notar também que a Literatura muitas vezes recusa a nomeação “literatura digital”, por não acreditar que textos inscritos em plataformas diferentes do livro em formato códice, tão simbólico e consagrador, possam ser considerados Literatura.
Para finalizar esta publicação, que já se estendeu mais do que esperávamos, gostaríamos de refletir brevemente sobre o sistema de produção de valor das obras, recuperando as noções de espaço canônico e espaço associado de Dominique Maingueneau, em sua obra intitulada Discurso literário (2006). Para o linguista francês, o espaço canônico é aquilo que reconhecemos como obra, como material autoral, em outras palavras, diz respeito à “produção autoral que, num paradoxo constitutivo, se define como obra: institui o autor sem o qual ela própria não se instituiria” (GUIMARÃES, 2017, p. 27). Por outro lado, “A natureza do espaço associado varia de acordo com o espaço canônico”, uma vez que diz respeito a toda a vida pública que dá sustentação ao espaço canônico e contribui, deste modo, para a manutenção da autoria, produzindo rumor público. O espaço associado é, portanto, dependente do espaço canônico e, juntos, os espaços conjugados compõem a obra tal como a conhecemos.
É o espaço associado que produz o valor de uma obra, pois ela não possui valor per se, ele lhe é atribuído pelo rumor público que a ele remete e se refere. Assim como o espaço associado não existe sem o espaço canônico (não há como se referir a uma obra que não existe), o espaço canônico também não existe sem o espaço associado, pois se não há quem fale sobre a obra, é como se ela não existisse, uma vez que não possui vida pública.
Pensando em termos literários, uma avaliação positiva de um crítico literário consagrado (ou mesmo uma recomendação por parte de um grupo de escala global como o BTS) pode atribuir à obra valor suficiente para torná-lo um bestseller, por exemplo, bem como uma crítica negativa pode ter o efeito oposto.
Com isso, encerramos esta reflexão que se mostrou muito proveitosa!
Até a próxima!
*Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.