Aqueles que se afastam de Omelas: uma heterotopia?

Karen Naomi Aisawa
8 min readSep 13, 2020

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Cena do clipe de Spring Day, do BTS, no qual vemos os sete membros do grupo em frente a uma árvore

Você já ouviu falar em Omelas?

Trata-se de uma cidade fictícia apresentada no conto Aqueles que se afastam de Omelas (The ones who walk away from Omelas), publicado em 1973 sob a autoria de Ursula K. Le Guin.

No início, a cidade de Omelas é apresentada pela autora como um lugar perfeito onde todos são felizes, a música contagia e as pessoas dançam. Um lugar sem rei, sem espadas ou ouro, sem clero, soldados ou criminosos:

Como é que eu posso descrever o povo de Omelas?
Eles não eram crianças inocentes e felizes — apesar de seus filhos serem, de fato, felizes. Eram inteligentes, maduros, adultos, apaixonados, cujas vidas não eram miseráveis. Ó maravilha! mas eu gostaria de poder descrevê-lo melhor. Eu gostaria de poder convencê-lo. Omelas soa, em minhas palavras, como uma cidade em um conto de fadas, há muito tempo, em um lugar muito longe, era uma vez….

Entretanto, essa cidade tem um terrível segredo guardado (trancafiado!) em um porão sob um belo edifício público ou residência:

O quarto é de cerca de três passos de comprimento e dois de largura: um mero armário de vassouras ou sala de ferramenta em desuso. Neste quarto, uma criança está sentada. Poderia ser um menino ou uma menina. Parece ter cerca de seis anos mas, na verdade, tem quase dez. É débil mental. Talvez nasceu com defeito ou, talvez, tenha se tornado imbecil através do medo, desnutrição e abandono. Ela esfrega seu nariz e, ocasionalmente, se atrapalha vagamente com seus dedos do pé ou genitais, pois fica encolhida no canto mais distante do balde e dos dois esfregões. É medo dos esfregões. Ela os acha horríveis. Ela fecha os olhos, mas sabe que os esfregões ainda estão lá, de pé; e a porta está fechada; e ninguém virá.

Essa criança é o “pequeno” sacrifício dos habitantes de Omelas. Em troca de seu sofrimento, todos podem viver felizes e despreocupados. Trata-se de um contrato social implícito e aceito por toda a comunidade. Uma deturpação do mundialmente famoso lema dOs três mosqueteiros, no qual Um deve sacrificar-se por Todos, mas ninguém se sacrifica pelo Um:

Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança.

Mesmo as crianças são duramente apresentadas à verdade quando atingem certa idade. Algumas a aceitam de primeira. Outras se sentem angustiadas, inconformadas com sua própria impotência. Um único ato de bondade. Um único ato de bondade bastaria: o encanto se quebraria na hora. A música pararia de tocar, ninguém mais dançaria e seriam infelizes. E surgiria a escravidão, o rei e o ouro, as espadas, o clero, os soldados e criminosos.

Entretanto, vez ou outra, um adolescente ou mesmo um adulto, inconformados com a situação, decidem abandonar a cidade. Incapazes de se levantar contra o sofrimento de uma criança, eles apenas fogem.

Eles vão. Abandonam Omelas, sempre em frente para a escuridão, e eles não voltam. O lugar para onde eles se dirigem é ainda menos imaginável para a maioria de nós do que a cidade da felicidade. Eu realmente não posso descrevê-lo. É possível que não exista. Mas eles parecem saber para onde estão indo, aqueles que se afastam de Omelas.

Confira o conto na íntegra:

Confesso nunca ter ouvido falar de Omelas até 2017, na ocasião do lançamento do clipe de Spring Day, do mundialmente conhecido grupo de pop sul-coreano BTS, no qual vemos uma clara referência ao nome da cidade na forma de um letreiro de estabelecimento, como observável na figura abaixo:

Cena do clipe de Spring Day, do BTS, no qual vemos Rm, Suga e J-hope em frente a um estabelecimento com o letreiro “Omelas”

Confira o clipe na íntegra (não se esqueça de ativar as legendas em inglês!):

Dado o histórico do grupo em trazer referências literárias em seus trabalhos, a menção ao conto de Le Guin não foi uma surpresa. A referência de obras pelo grupo com certeza tem poder consagrador ou, ao menos, popularizador, mas não falaremos sobre isso (por agora).

Enquanto pesquisava sobre o conto para escrever este texto, deparei-me com uma reflexão do(a) usuário(a) Leangelini, no blog Imagining futures: Speculative design and social justice, em postagem intitulada Omelas: Utopia? Dystopia? Just a Topia? e acreditei casar (ou chegar bem perto) com o conceito de heterotopia pensado por Foucault. Oras, em sua postagem, Leangelini nega a possibilidade de Omelas ser uma cidade utópica (onde “ tudo é perfeito e maravilhoso e ninguém tem preocupações no mundo”) devido à existência da criança em sofrimento, mas também nega-lhe o título de distopia (onde “tudo é ruim ou desagradável”) devido à existência de todas as pessoas felizes.

Ao longo de sua interessantíssima análise, o(a) autor(a) também considera os vários pontos de vista:

Então, o que isso faz de Omelas? Uma utopia? Talvez para os cidadãos de Omelas que permaneceram. Uma distopia? Talvez para a criança no armário. Uma utopia realista? Talvez para o leitor. E para aqueles que se afastam de Omelas? Talvez para eles é apenas uma “topia”, um lugar que não é nem bom e nem mau, nem aqui e nem ali, apenas um lugar do qual se afastar.

Confira a postagem de Leangelini na íntegra:

Entretanto, ao contrário do(a) autor(a), defenderemos aqui a teoria de que, mais do que “um lugar que não é nem bom e nem mau, nem aqui e nem ali”, uma topia, Omelas e, mais especificamente, o armário onde é aprisionada a criança, é uma heterotopia (se bem entendi o conceito), tal qual pensada por Michel Foucault em De outros espaços.

Para o filósofo francês, a heterotopia é como uma utopia, mas que, ao contrário desta, se realiza fisicamente no mundo e, mais que isso, proporciona-nos uma experiência, um lugar no qual somos atraídos temporariamente para fora de nós mesmos, para uma realidade que só pode ser vivida nesse espaço heterotópico e naquele período de tempo. É também um conceito que carece de um conjunto de crenças compartilhadas e cultivadas que justificam a existência desse espaço, reconhecido mesmo por quem não cultiva tais práticas.

Assim, argumentamos (destacando que não se trata da afirmação de um fato, mas da construção de uma reflexão): em nível macro, podemos dizer que Omelas constitui uma heterotopia para aqueles que deixaram a cidade, uma vez que instaura-se, para esses indivíduos, como um espaço, uma topia que os proporciona a experiência de olharem para fora de si e verem um mundo diferente do que estão acostumados, um espaço onde se deparam com a heterogeneidade ao fitarem aquele espaço de subversão, um posicionamento de passagem, transição, marcado no tempo, que prescinde da crença no valor do sofrimento de uma criança em prol da ilusão de todos os outros habitantes. Por outro lado, em nível micro, podemos dizer que o porão utilizado como armário de vassouras, no qual encontra-se aprisionado o pobre sacrifício, é também uma heterotopia, no sentido de ser um lugar que atrai os habitantes que ficaram na cidade para fora de si mesmos, para uma dura realidade que só pode ser vivida naquele espaço e que prescinde da crença compartilhada entre os habitantes de que é justificado o sofrimento de um indivíduo em prol de outros tantos.

Poderíamos refletir, ainda, sobre as duas categorias de heterotopia mencionadas por Foucault: as heterotopias de crise e as heterotopias de desvio. As heterotopias de crise são definidas como “lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos, reservados a indivíduos que estão, em relação à sociedade e ao ambiente humano que ocupam, numa situação de crise: adolescentes, mulheres menstruadas ou grávidas, idosos, etc”, como o armário reservado à criança que, podemos dizer, encontra-se em uma situação de crise (extrema, por sinal!). Já as heterotopias de desvio são “aquelas nas quais os indivíduos cujos comportamentos são desviantes em relação à norma ou média necessárias são colocados”.

Quanto a esta última categoria de heterotopia, lembrei-me do “fenômeno” hikkikomori, muito comum nos países asiáticos, mas não limitado a eles. Como bem colocado na matéria da BBC,

O termo hikikomori se refere tanto à condição quanto às pessoas vítimas dela e foi cunhado pelo psicólogo japonês Tamaki Saito em seu livro Isolamento social: uma adolescência sem fim, de 1998.
Hoje, esse conceito é definido como uma combinação de isolamento físico e social somada com um sofrimento psicológico que pode durar seis meses ou mais.

Trata-se, assim, de pessoas que, devido a diversos fatores (mas normalmente relacionados à baixa autoestima), isolam-se permanentemente em seus quartos, evitando contato pessoal com toda a sociedade à sua volta, incluindo amigos e familiares. São, deste modo, nos termos de Foucault, “indivíduos cujos comportamentos são desviantes em relação à norma ou média necessárias”, uma vez que diverge da crença partilhada e cultivada de manter o contato social e de manter-se produtivo para a sociedade. Entretanto, ao contrário da definição de Foucault, neste caso, os hikkikomori não são forçosamente colocados nesse espaço heterotópico que é o seu quarto. Essa atitude parte das próprias vítimas.

É um estilo de vida comumente confundido com a dos NEETs (do inglês, Not currently engaged in Employment, Education or Training), mas, ao contrário dos hikkikomori, os NEETs não se isolam da sociedade à sua volta. Não têm, portanto, uma heterotopia de desvio na qual são colocados, apesar de também não contribuírem produtivamente para a sociedade.

Para saber mais sobre os hikkikomori e os NEETs, confira a publicação da NSV Mundo Geek, bem como a matéria da BBC:

Para saber mais sobre o conceito de heterotopia, confira o texto de Foucault, De outros espaços, na íntegra:

Por fim, deixo também uma sugestão de reflexão, por Lidia Zuin:

Até a próxima! ;)

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.

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Karen Naomi Aisawa

Olá! Seja muito bem-vindo(a)! Neste perfil trago algumas reflexões provenientes de disciplinas do curso de bacharelado em Linguística de que participo(ei).