Sobre interlíngua e tradução

Karen Naomi Aisawa
8 min readNov 23, 2020

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Nesta última semana, publiquei um texto aqui no Medium para compor a avaliação da disciplina “Discurso literário: criação, edição e consumo”, de que estou participando. A proposta da atividade, que envolvia uma reflexão acerca de ao menos um dos verbetes de compõem o livro Tarefas da edição: pequena mediapédia (2020), publicado pela editora-laboratório do Bacharelado em Letras — Tecnologias da Edição do CEFET-MG, me levou a um interessante raciocínio sobre os elementos paratextuais dos livros. Entretanto, esse não fora o único verbete a chamar a minha atenção — o que não é surpresa alguma, já que tenho forte interesse pela área da editoração.

Assim, dada a variedade de verbetes interessantíssimos presentes no livro citado acima, considerei ser interessante trazer para esta última postagem da disciplina “Literatura e mercado editorial” reflexões acerca dos verbetes “Tradução”, de Josimar Gonçaves Ribeiro, e “Tradução literária”, de Denise Regina de Salaes, procurando fazer uma correlação com os tópicos abordados na aula do dia 18/11/2020, em especial, ao conceito de interlíngua, pensada por Dominique Maingueneau (1995; 2006).

Para o linguista francês, a interlíngua diz respeito à “escavação de um hiato irredutível”, isto é, à mobilização, por parte de um autor, de uma língua que se encontra entre a língua que usamos no dia a dia e a língua que se põe como outra, como outro modo de dizer e sobre a qual não é necessária legitimação, pois é quase um convite à experimentação da própria língua. Em outras palavras, a interlíngua diz respeito a um modo próprio de se dizer o que se diz, de achar um código linguageiro tão próprio do autor que se projeta no leitor a sensação de que aquilo não poderia ter sido (d)escrito e/ou dito de nenhum outro modo que não o ora apresentado. Assim, entendemos que

Associam-se estreitamente nessa noção [de código linguageiro] as acepções de “código” como sistema de regras e de signos que permite uma comunicação e de “código” como conjunto de prescrições: por definição, o uso da língua que a obra implica se apresenta como a maneira pela qual se tem de enunciar, por ser esta a única maneira compatível com o universo que assim se instaura (MAINGUENEAU, 2006, p. 182, grifo meu).

A interlíngua trata-se, deste modo, de um linguajar único, próprio e característico de cada autor, de seu estilo (de escrita), como é comumente chamado pela crítica literária e pelos estudos da Linguística Textual.

A partir disso, podemos pensar as questões de tradução de obras literárias, que envolvem ação direta, por parte do tradutor, na interlíngua mobilizada pelo autor, uma vez que, ao contrário do que se imagina no senso comum, a língua não é uma espécie de código, linear, transparente, não ambíguo, e independente de fatores sócio-históricos, mas é opaca, sempre se relacionando com o que lhe é externo, e seus sentidos se produzem a partir de relações parafrásticas. Essa incompreensão da língua por parte da sociedade, alheia aos estudos linguísticos, conduz a certos estereótipos do trabalho de tradução e do profissional que a realiza. Como diz Amanda Moura,

Há quem acredite que traduzir é encontrar de uma língua para a outra o nome equivalente das coisas, e quem pense que o trabalho do tradutor é abrir o dicionário para, como num passe de mágica, encontrar ali nos verbetes as respostas precisas e certeiras de que precisa para transpor um termo de um idioma para o outro.

Entretanto, como já dissemos, a língua tem autonomia relativa, isto é, é um código linguageiro que sempre se relaciona com o que lhe é externo, implicando no fato de que

O ato tradutório consiste no movimento de transformação entre linguagens, tradições, culturas, tempo e espaço. É o trânsito entre escrever e transcrever, de ir além do que está registrado, de recuperar a história inserida entre as letras e sons que revelam um pensamento (RIBEIRO, 2020, p. 126).

Cabe destacar também os diferentes tipos de tradução identificadas por Roman Jakobson (1995, p. 63–64 apud SALES, 2020, p. 128):

1) “a tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua”; 2) “a tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua”; 3) “a tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais”.

Em termo gerais, a tradução interlingual é a mais conhecida pela sociedade, talvez pelo fato de muitos tradutores serem também autores de suas próprias obras. Além disso, “A lei de direitos autorais de 1998 reconhece ao tradutor o direito de autor de obra derivada de outra, chamada originária ou primígena”, como conta Sales (p. 130). Tal lei implica, deste modo, no reconhecimento do trabalho do tradutor, que é consagrado, diferentemente da tradução intralingual que é exercida pelos profissionais de revisão, por exemplo, que são creditados mas não consagrados, e da tradução inter-semiótica (esta última eu particularmente nunca vi creditada em nenhuma obra).

Essa consagração do tradutor como um quase-autor provém também, muito provavelmente, do trabalho direto e delicado com o estilo, com a interlíngua mobilizada pelo autor “original”, que deve ser equilibrada à interlíngua própria do tradutor. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, no caso de Tatiana Belinky, que,

Convidada a organizar e traduzir uma coletânea de contos de Anton Tchékhov, ela enfrentou dilemas editoriais, como conta em “Duas palavras de explicação”, texto de apresentação do volume. […] O outro dilema foi dar conta do estilo do autor em português, tendo, algumas vezes, “de ‘adaptar’ além de traduzir, como no caso do conto ‘O sobrenome cavalar’, cujo humor específico se perderia, caso eu não tomasse a liberdade de usar o radical dos nomes, traduzido, e o final, russo mesmo”.

Nesse sentido, a tradução literária pode ser pensada como ato da comunicação intercultural. Pela tradução, as culturas se comunicam, se conhecem, se apresentam (SALES, 2020, p. 131, grifo meu).

Outro caso interessante, com o qual tive contato a partir da leitura da postagem de Thiago Carvalho Gonçalves, diz respeito a uma experiência relatada por John Green, que retomo nas palavras de Gonçalves (2020, s/p):

Em um dos (inúmeros) vlogs de John Green, autor do best-seller “A culpa é das estrelas”, John conta a historia de uma noite de autógrafos na Alemanha. Um fã se aproxima do escritor para ter seu livro assinado e diz, se lembro bem, algo como: “eu já li o seu livro em inglês e em alemão, mas eu prefiro a versão traduzida… você é mais engraçado em alemão”.

Tais ca(u)sos nos permitem pensar, assim, no fato de que, salvo casos como o fã de John Green, que procurou ler a obra em línguas diferentes, nós normalmente temos contato com obras estrangeiras a partir de sua tradução para a nossa língua vernácula e, portanto, a partir da interlíngua própria do tradutor (que busca assemelhar-se ao do autor do original). Isso implica dizer que, quando elogiamos a escrita de determinado autor estrangeiro, nós não elogiamos a escrita dele propriamente, mas a escrita do tradutor que atuou como um mediador para trazer a obra para o nosso idioma. Assim, quando elogio a escrita de Agatha Christie, por exemplo, elogio a escrita de seu tradutor para o português brasileiro, Newton Goldman (no caso da obra “Morte no Nilo”, publicado em 2016 pela Harper Collins), que obteve sucesso nessa mediação entre línguas e, mais especificamente, entre interlínguas (a própria e a da autora).

Para finalizar, recupero parte da fala de Brenno Silveira, da obra “A arte de traduzir”, citado por Amanda Moura, seguida de sua conclusão, que, acredito, sintetizam com maestria esta discussão:

Na arte literária, quem escreve obedece à sua própria inspiração; tanto melhor ela será, no entanto, quanto mais fixada esteja numa ‘concepção’ definida. No caso do tradutor, a concepção foi fixada por outrem, em outra língua. Mas, se quem traduz é um escritor ‘sub-rogado’, não deixa de ser, ainda assim, ainda e também um escritor, com personalidade própria (2004, p. 16).

Pois se falamos de um trabalho criativo, com personalidade própria, então, o tradutor inventa? Respondo que sim, inventa, mas nunca à revelia, pois está sempre a serviço do autor e dos conjuntos de sentidos que o texto em questão impõem. Em outras palavras, para alcançar esse ou aquele efeito de sentido, numa postura sempre dialógica, o tradutor vasculha vocabulário, provérbios, gírias, coloquialismos, registros, enfim, todas as dimensões da língua e do discurso, explorando múltiplos dizeres para recriar o espírito do original. Mas o original está longe de ser o parâmetro máximo do tradutor, que há de lidar com coerções de diferentes naturezas (editoriais, sócio-históricas, públicas etc.), como as normas impostas por manuais de editoração e estilo, prazos estabelecidos, censura, a (não) relação com demais profissionais envolvidos na produção da obra em questão como preparador, revisor e editor. E se “[…] a edição submete a circulação das obras a coerções e a finalidades que não são idênticas àquelas que governaram sua escrita” (CHARTIER, 2020, p. 76), que outras práticas impactam o ofício criativo do tradutor? (MOURA, 2020, s/p).

Antes de me despedir, gostaria de deixar aqui um convite a todos para, caso tenham interesse, continuarem a ler as postagens que farei para a disciplina da graduação que mencionei no início, “Discurso literário: criação, edição e consumo” (a primeira postagem já está aqui no Medium), cujos temas discutidos relacionam-se fortemente àqueles apresentados durante nosso percurso nesta disciplina de pós-graduação.

Agradeço a todos e todas que leram minhas postagens até aqui! Muito obrigada! E agradeço também, é claro, à professora Luciana e ao professor Haroldo, que tiveram a paciência e a delicadeza para bem conduzir uma disciplina nestes tempos pandêmicos e nesta modalidade de ensino remoto. Muito grata!

Nos vemos na próxima e última aula!

Até breve e se cuidem! ❤

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.

Referências bibliográficas:

GONÇALVES, Thiago Carvalho. “Você é Mais Engraçado em Alemão” — Reflexões sobre tradução/transformação. Medium, 2020. Disponível em: <https://medium.com/@thiagohimself/voc%C3%AA-%C3%A9-mais-engra%C3%A7ado-em-alem%C3%A3o-reflex%C3%B5es-sobre-tradu%C3%A7%C3%A3o-transforma%C3%A7%C3%A3o-a3a522f5fbe3>. Acesso em: 23 nov. 2020.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1995.

______. Discurso literário. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

MOURA, Amanda. O tradutor no fio da mediação editorial. LinkedIn, 2020. Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/o-tradutor-fio-da-media%C3%A7%C3%A3o-editorial-amanda-moura/>.Acesso em: 23 nov. 2020.

RIBEIRO, Josimar Gonçalves. Tradução. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cleber Araújo (Orgs.). Tarefas da edição: pequena mediapédia. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020. p. 126–127. Disponível em: <http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-arquivo-digital-07-10-20.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2020.

SALES, Denise Regina de. Tradução literária. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cleber Araújo (Orgs.). Tarefas da edição: pequena mediapédia. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020. p. 128–133. Disponível em: <http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-arquivo-digital-07-10-20.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2020.

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Karen Naomi Aisawa

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