Paratextos: os primeiros espaços associados de uma obra

Karen Naomi Aisawa
6 min readNov 19, 2020

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Para esta semana, tivemos como proposta escrever sobre um dos verbetes do livro Tarefas da edição: pequena mediapédia (2020), publicado pela editora-laboratório do Bacharelado em Letras — Tecnologias da Edição do CEFET-MG. Assim, enquanto passeava pelo livro, o verbete sobre paratextos me suscitou algumas reflexões que julgo interessantes de serem compartilhadas aqui.

Primeiramente, uma definição: o que são paratextos? De acordo com o verbete, elaborado por Marta Rocha Costa (p. 95–97),

Compreendemos […] a expressão “paratexto” como o conteúdo que se apresente ao lado do texto principal de um livro ou que faça referência a ele. Dessa forma, paratextos são todos os elementos verbais ou não verbais que nos preparam para a leitura de um livro.

Muzzi identifica esses elementos como sendo: capa, título, nome e sobrenome do autor, orelha, folha de rosto, ficha catalográfica, dedicatória, prefácio, sumário, notas, bibliografia e anexos. Portanto, um livro não tem início no título e não se encerra no último ponto final. Na composição de um objeto complexo como o livro, sempre serão necessários outros elementos que cercam o texto principal e esses são o que chamamos “paratextos” (COSTA, 2020, p. 95).

Considerando a breve definição apresentada, destacamos aqui alguns pontos que nos chamaram atenção:

i) a listagem, um a um, de elementos identificados como paratextos, o que nos permite pressupor que os elementos que compõem esse grupo sejam finitos e conhecidos, que não há possibilidade de existência de paratextos outros que não os individualmente nomeados pela autora. A classe de paratextos é tomada assim, como um grupo bem definido e bem (de)limitado de elementos (sentido que poderia muito bem ser diluído, amenizado, com o simples acréscimo de reticências após a listagem, isto é, com o mero acréscimo deste sinal que significa tanto com tão pouco…);

ii) No trecho final da citação apresentada acima — a saber, “Na composição de um objeto complexo como o livro, sempre serão necessários outros elementos que cercam o texto principal e esses são o que chamamos “paratextos” —, percebemos uma visão muito peculiar dos paratextos como elementos limítrofes, no sentido de que atuam como muros que circunscrevem o texto principal, atuando tanto como seu protetor, quanto como intermediador de seu contato com o mundo exterior, como ilustrado na figura:

Fonte: Autoria própria.

Merecem destaque, ainda, os seguintes trechos:

Muzzi explica que, com o surgimento da imprensa, houve uma redefinição do livro e, com isso, uma nova organização de textos e paratextos, mas foi só a partir do século XVII que os paratextos se fixaram com a função de demarcar espaços e promover o livro como um novo objeto de leitura (Ibid., p. 96, grifo nosso).

Tal trecho nos permite pensar, assim, os conceitos de espaço canônico e de espaço associado de Dominique Maingueneau (2006), para quem, em linhas gerais (e retomando outra postagem que fiz aqui no Medium para a disciplina da pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza),

o espaço canônico é aquilo que reconhecemos como obra, como material autoral, em outras palavras, diz respeito à “produção autoral que, num paradoxo constitutivo, se define como obra: institui o autor sem o qual ela própria não se instituiria” (GUIMARÃES, 2017, p. 27). Por outro lado, “A natureza do espaço associado varia de acordo com o espaço canônico”, uma vez que diz respeito a toda a vida pública que dá sustentação ao espaço canônico e contribui, deste modo, para a manutenção da autoria, produzindo rumor público. O espaço associado é, portanto, dependente do espaço canônico e, juntos, os espaços conjugados compõem a obra tal como a conhecemos (AISAWA, 2020, s/p)

Assim, considerando o trecho “os paratextos se fixaram com a função de demarcar espaços e promover o livro como um novo objeto de leitura”, podemos dizer que os paratextos são os primeiros espaços associados de uma obra, pois são as primeiras retomadas dessas obras e servem, portanto, como os disparadores para novas retomadas do espaço canônico. E a depender de quem produz e de como produz esses paratextos, instaura-se já nesse momento a produção do valor do espaço canônico, uma vez que

É o espaço associado que produz o valor de uma obra, pois ela não possui valor per se, ele lhe é atribuído pelo rumor público que a ele remete e se refere. Assim como o espaço associado não existe sem o espaço canônico (não há como se referir a uma obra que não existe), o espaço canônico também não existe sem o espaço associado, pois se não há quem fale sobre a obra, é como se ela não existisse, uma vez que não tem vida pública (Ibid., s/p)

Isso pode ser evidenciado, por exemplo, em uma fala do professor Carlos Piovezani, professor da Universidade Federal de São Carlos, que recentemente participou do “Momento Literário” da I Semana da Linguística (SeL) da UFSCar, apresentando sua mais recente obra publicada, A Voz do povo: Uma longa história de discriminações. Na referida apresentação que o autor fez de seu livro, compartilhou com o público também alguns “bastidores” de sua concepção, dizendo que ele fez questão de configurar o livro com paratextos que o dessem legitimidade e, portanto, pediu a Jean-Jacques Courtine (Universidade de Paris /Sorbonne Nouvelle) para escrever o prefácio, a Marc Angenot (Universidade McGill / Sociedade Real do Canadá) para escrever o prefácio e a José Luiz Fiorin (Universidade de São Paulo) e Elvira Arnoux (Universidade de Buenos Aires) para escreverem as orelhas.

Assim, ao estabelecer essa configuração do espaço canônico cercado por espaços associados primeiros já reconhecidos, legitimados e consagrados, Piovezani produz valor para o livro mesmo antes deste ganhar o mundo. Deste modo, a obra entra no sistema do mercado editorial já com um certo valor inicial ancorado nos nomes dos pesquisadores (nacionais e internacionais) consagrados, legitimando-se.

Por fim, destacamos também o fato de haver uma espécie de divisão desses paratextos em categorias, como observável no trecho abaixo:

Nessa obra [Paratextos editoriais], o autor [Gérard Genette] divide o paratexto em duas categorias espaciais: peritexto e epitexto, que coexistem com o texto principal. O peritexto localiza-se na periferia do texto principal e o epitexto localiza-se em espaços mais distantes, como, por exemplo, resenhas e notas midiáticas (COSTA, 2020, p. 95).

Em outras palavras, peritexto designa os paratextos que acompanham e integram a própria constituição do livro, portanto, uma relação mais imediata, e epitexto designa as relações que o livro estabelece com o mundo “exterior”, com a rede de aparelhos (MAINGUENEAU, 2006) do sistema literário/editorial, isto é, com pessoas e/ou instituições que atuam como mediadores, intérpretes, avaliadores e/ou cânones dessa obra.

Com isso, encerro esta primeira reflexão.

Até a próxima!

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina optativa “Discurso literário: criação, edição e consumo”, ministrada por Luciana Salazar Salgado.

Referências bibliográficas:

AISAWA, Karen Naomi. Discurso literário e a produção de valor. Medium, 2020. Disponível em: <https://naomiaisawa.medium.com/discurso-liter%C3%A1rio-e-a-produ%C3%A7%C3%A3o-de-valor-65d8960ef155>. Acesso em: 19 nov. 2020.

GUIMARÃES, Amanda. Ritos editoriais genéticos: O processo de criação e edição no mundo dos fãs. 2017. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Plena em Letras — Português/Inglês) — Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, 2017. Disponível em: < https://grupopesquisacomunica.files.wordpress.com/2019/09/tcc-amanda-guimaracc83es-2017.pdf >. Acesso em: 19 nov. 2020.

COSTA, Marta Rocha. Paratexto. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cleber Araújo (Orgs.). Tarefas da edição: pequena mediapédia. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020. p. 95–97. Disponível em: <http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-arquivo-digital-07-10-20.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2020.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

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