A retórica da denúncia

Karen Naomi Aisawa
8 min readFeb 7, 2023

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Anteriormente, empreendemos, como parte da avaliação da disciplina Laboratório 8 — Texto e discurso, uma análise do caso de boicote à Editora Blue Hope, decorrente de uma série de denúncias (exposeds) por parte de autores que foram publicados por essa empresa, de ex-funcionários e de (ex-)clientes, que levaram ao cancelamento dessa pequena editora.[1] O nosso objetivo na ocasião foi estudar a chamada cultura do cancelamento a partir do estudo de um caso específico de um nicho em expansão do mercado editorial: o da publicação de fanfics em forma de livros. Para tanto, valemo-nos de conceitos da Análise do Discurso de base materialista — a AD francesa — e de textos da área da comunicação para analisar, principalmente, alguns comentários em resposta ao exposed de Julls (@mutacyon, no Twitter), autora de Glitter, uma das obras publicadas pela editora em questão. Como resultado, obtivemos que

para cancelar uma pessoa ou uma instituição não basta simplesmente fazer uma denúncia ou uma reclamação, é preciso comover as pessoas, fazê-las solidarizarem-se com a(s) vítima(s) de modo que se frustrem com a(s) injustiça(s) cometida(s) e se unam pela reivindicação de uma punição. Em suma, é necessária a construção de um sentimento coletivo de moralidade entre os participantes contra a parte errante, dado que “os julgadores se apoiam e retroalimentam entre si o sentimento de legitimação da antagonização” (BRASILEIRO; AZEVEDO, 2020, p. 90). E essa antagonização acontece de um modo específico: os integrantes do “júri” falam em nome da vítima, em detrimento da parte errante (AISAWA, 2022, grifos nossos).

Ficou evidente, assim, o papel central das emoções suscitadas pelos discursos para o sucesso dos cancelamentos, o que nos motivou a analisar com mais vagar o exposed de Julls, desta vez com base nos pressupostos da Retórica, em especial, os conceitos de logos, ethos e pathos, de modo a obtermos um vislumbre da constituição do que chamaremos aqui de retórica da denúncia. Dada a constatação da importância das emoções para esse tipo de enunciado, focalizaremos neste breve estudo a dimensão do pathos (disposição afetiva do auditório) sem, contudo, desprezarmos o logos (raciocínio lógico) e o ethos (imagem de si do orador), visto que são inseparáveis: todo discurso apresenta, com menos ou mais destaque, essas três instâncias, que derivam das três operações/objetivos da eloquência, a saber: docere (ensinar), delectare (agradar) e movere (comover).

De acordo com Plebe,

[…] para a credibilidade do orador não é suficiente uma retórica demonstrativa, mas é necessária também uma retórica emocional, que vise a tornar digno de fé o orador não só por sua atitude, como por seus argumentos.

Para Aristóteles esta credibilidade emocional é obtida sobretudo com base em três elementos […]. São eles: sabedoria, virtude e benevolência. Estes três elementos constituem o “caráter” do orador, o seu ethos.

Contudo, para Aristóteles, ao lado do ethos, o orador deve possuir a capacidade de suscitar paixões no ouvinte. Não basta que o orador se mostre numa dada atitude; é necessário que ele procure também tornar favorável à sua a postura emotiva do ouvinte (1978, p. 42).

Assim, de modo a estudar a capacidade de “tornar favorável à sua a postura emotiva do ouvinte”, passaremos a uma breve análise de alguns trechos do discurso de Julls. Formado por uma sequência de 24 tuítes, a longa publicação tem início com uma espécie de chamada em letras garrafais: “UM COMUNICADO EXTREMAMENTE IMPORTANTE SOBRE A PRODUÇÃO DO LIVRO GLITTER E A EDITORA EM QUESTÃO”. A partir disso, podemos destacar, como fizemos na análise sobre a cultura do cancelamento,

[…] o fato de que, apesar de a publicação poder ser caracterizada como uma denúncia, um exposed, a usuária diz se tratar de um comunicado, enfatizando seu caráter informativo. Além disso, ela não menciona em momento algum o nome da editora contra a qual estava prestando queixa, chamando-a simplesmente de “editora em questão” e “editora”, o que nos leva a pensar que, por se tratar de um comunicado direcionado principalmente aos seus fãs, o nome da empresa responsável pela publicação de seu livro já é de conhecimento de todos (AISAWA, 2022).

Em seguida, podemos dizer que a autora procura estabelecer certa relação de cumplicidade com os leitores ao pedir-lhes que “leiam [a thread] com muita atenção e sem parar o stream, ok?”, dado que o ato de fazer um comentário em algum dos tuítes publicados pode “parar o stream” (interromper a sequência de publicações) dela, fazendo com que um tuíte perca a ligação com o anterior, fragmentando a mensagem.

Na publicação seguinte, ela começa de fato o comunicado deixando claro que o está fazendo por recomendação de seu advogado, trazendo uma voz de autoridade para justificar seu discurso. Ao dizer que os funcionários da “editora que atualmente está publicando Glitter” “Não cumpriram com inúmeros combinados +[2]/+ e isso anda me estressando ao extremo”, ela deixa clara a sua frustração e descontentamento com a quebra de acordos da outra parte, e ao declarar que “Já cobrei INÚMERAS vezes uma melhora nessa questão, e […] tive uma discussão seríssima com a diretoria da editora”, Julls se coloca na posição de uma pessoa autorizada a fazer essas exigências e a representar os clientes insatisfeitos. Em suma, ela se coloca na posição desses clientes, filia-se a eles, como uma igual. Entretanto, quando menciona que “[…] a única coisa que [os funcionários] fizeram foi avisar que e-mails estavam sendo enviados”, mostra-se irritada, pois, de acordo com Aristóteles, se encoleriza “contra os que não se importam do mal que causam” (2005, p. 165).

Entrando no assunto principal — a produção do livro –, a autora afirma: “Eu não participei ativamente da produção dele [do livro]. Eu não pude acompanhar a revisão e a diagramação”. O uso do verbo modal “poder” implica, neste contexto, uma possibilidade que lhe foi negada, gerando uma quebra de expectativa que leva à cólera, pois, novamente de acordo com Aristóteles, “o inesperado entristece muito mais”. Após expor mais atitudes questionáveis da editora durante o processo de produção da obra, a usuária declara que “a questão é que eu não sei se o produto que vocês receberão terá qualidade” (p. 164), passando agora a envolver diretamente os consumidores que pagaram pelo produto durante o período de pré-venda. A esse respeito, podemos retomar a reflexão de Aristóteles acerca do medo, pois segundo ele, “[…] quando for vantajoso para um orador que os ouvintes sintam temor, convém adverti-los no sentido de que pode acontecer-lhes mesmo alguma coisa de mal” (p. 176). Assim, incute-se o sentimento de medo nos leitores ao trazer a constatação de que eles podem ser prejudicados junto com a usuária e se constrói um ethos de autora preocupada com seu público, sua comunidade.

O relato de que os funcionários “Ignoravam minhas mensagens, por vezes me deixando dias sem uma resposta, e minha última tentativa acarretou em uma das piores coisas que já me disseram, +/+ que foi ‘temos todo o direito de editar o seu livro, e se acharmos necessário alguma mudança que você não quiser fazer, podemos contratar alguém para fazer no seu lugar’” contribui para intensificar o sentimento de aflição, empatia e cólera no público, pois como amantes da obra e de sua autora, “Irritam-se, também, contra os que falam mal deles e mostram desprezo pelas coisas que eles mais estimam”. O fato de a usuária optar por utilizar uma citação direta (marcada pelas aspas) em vez de uma citação indireta também contribui para agravar o sentimento de indignação do público, visto que isso permite, em tese, que os leitores experimentem o mesmo sentimento que Julls sentiu ao ouvir tais palavras. A citação direta pode, ainda, dar mais credibilidade ao discurso devido à reprodução fiel das palavras utilizadas, sem a mediação da usuária. De fato, há uma diferença enorme entre dizer “[…] e minha última tentativa acarretou em uma das piores coisas que já me disseram, que foi ‘temos todo o direito de editar o seu livro, e se acharmos necessário alguma mudança que você não quiser fazer, podemos contratar alguém para fazer no seu lugar’” e dizer “e minha última tentativa acarretou em uma das piores coisas que já me disseram, que foi que eles têm todo o direito de editar o meu livro, e se eles acharem necessário alguma mudança que eu não queira fazer, eles podem contratar alguém para fazer no meu lugar”.

Os relatos seguintes, podemos dizer que destacam a construção do ethos da autora como uma pessoa que é corajosa e persistente para confrontar as coisas com as quais não concorda — “Eu estive sempre confrontando diretamente +/+ a editora por não concordar com inúmeras coisas”; “[…] apesar de muito nervoso, de muitas vezes só sentir vontade de deixar para lá, eu sempre confrontei” –, apesar de ser constantemente silenciada pela editora — “[…] já que pedi inúmeras vezes por isso e fui ignorada em todas elas. Eu não aprovei o manuscrito final, não pude mexer em nada dele, não pude opinar e muito menos apontar devidamente os +/+ erros de diagramação”; “[…] mas infelizmente fui deixada de fora disso da forma +/+ mais cruel possível” –, uma pessoa que sofre junto com seus fãs — “me angustia ver tantos leitores me pedindo uma luz e não poder dar nada. Se vocês estão sofrendo, eu estou o dobro, acreditem” –, que está respaldada pela Lei, representada pelo seu advogado, e que sempre pensa no bem de seus fãs — “[…] se vocês soubessem dos bastidores, jamais pensariam isso [que Julls é uma golpista, criminosa, aproveitadora e interesseira] de uma pessoa que tentou de tudo, +/+ de tudo MESMO, e que até perdeu horas de sono tentando achar uma solução que não afetasse a compra de vocês”.

Após reforçar novamente sua filiação a seus fãs ao pedir-lhes apoio emocional, “pois creio que estamos todos no mesmo +/+ barco…”, Julls encerra o comunicado declarando que “Já que a editora não me defende, eu mesma, juntamente do meu advogado, me defenderei”, construindo o ethos de uma pessoa autossuficiente e capaz de se defender por conta própria, isto é, uma pessoa confiante. E confiança se mostra um elemento importante para a cultura do cancelamento, visto que o ato de denunciar algo publicamente exige confiança, por parte do denunciante, em seu caráter virtuoso, correto, e o ato de se juntar para reivindicar algo indica confiança, por parte do público, em seu senso de justiça e em seus aliados, visto que, de acordo com Aristóteles, somos confiantes “[…] se achamos que dispomos de mais e melhores coisas, graças às quais inspiramos receio” (p. 177).

Assim, todos esses fatores identificados na análise ajudam a construir o sentimento de piedade no público, que, segundo Aristóteles, “consiste numa certa pena causada pela aparição de um mal destruidor e aflitivo, afectando quem não merece ser afectado, podendo também fazer-nos sofrer a nós próprios, ou a algum dos nossos, principalmente quando esse mal nos ameaça de perto” (p. 184). A junção dos sentimentos de amor, piedade e medo faz surgir, assim, a ira contra o(s) culpado(s) pela situação desfavorável e injusta, e quando várias pessoas são unidas pelo mesmo sentimento, gera-se a confiança para contra-atacar. Entretanto, como já foi mencionado no início deste texto, tais sentimentos não surgem do nada, “É evidente que o orador deve dispor, por meio do discurso, os seus ouvintes de maneira que se sintam na disposição de se converterem à ira, representando os seus adversários culpados daquilo que a provoca e como sujeitos dotados de um caráter capaz de a excitar” (p. 166).

Referências

AISAWA, Karen Naomi. Um olhar sobre a cultura do cancelamento: o caso da Editora Blue Hope. Medium, 2022. Disponível em: https://naomiaisawa.medium.com/um-olhar-sobre-a-cultura-do-cancelamento-o-caso-da-editora-blue-hope-1a6b1d9c1c28. Acesso em: 14 set. 2022.

ARISTÓTELES. Retórica. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2005.

PLEBE, Armando. Breve história da Retórica antiga. São Paulo: EPU, 1978.

Notas:

[1] Para uma descrição mais detalhada do caso, ver Aisawa (2022).

[2] Os sinais de mais (+) foram utilizados pela autora no início e no final de cada tuíte para indicar que há uma continuação.

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