Um olhar sobre a cultura do cancelamento: o caso da Editora Blue Hope

Karen Naomi Aisawa
20 min readSep 14, 2022

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“Eu gostaria de perguntar a todos vocês: Quais são seus nomes? O que anima vocês e o que faz seus corações baterem? Me digam suas histórias, eu quero ouvir suas vozes e ouvir suas convicções”. Foi com essas palavras inspiradoras e com esse convite à fala que o grupo de música pop sul-coreana BTS marcou presença na 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2018, e incentivou a manifestação de vários de seus fãs nas redes sociais.

Reconhecida como um lugar propício ao debate e a manifestações de cunho político e social, a internet é o berço de muitos movimentos por igualdade, justiça e acolhimento nos dias atuais, tais como o discurso Speak Yourself acima mencionado, direcionado principalmente aos jovens que não encontram respaldo da sociedade às suas vozes, às suas histórias e aos seus sonhos, e o movimento #MeToo contra o abuso sexual, que ganhou força principalmente em 2017, quando a atriz Alyssa Milano incentivou que vítimas de assédio sexual relatassem suas histórias no Twitter⁷ utilizando a #MeToo. Em pouco tempo, o apelo da atriz foi atendido com histórias de mulheres de todo o mundo, que viram no movimento um local de acolhimento e solidariedade. A grande repercussão das denúncias das vítimas resultou, posteriormente, na demissão de vários abusadores, inclusive de pessoas influentes, o que deu aos usuários a sensação de união, de poder e de justiça feita.

Assim, não é surpresa alguma o fato de o termo me too ter sido eleito “palavra do ano” de 2018 pelo Dicionário Macquarie, que seleciona “anualmente [desde 2006] as palavras e expressões que mais moldaram o comportamento humano”. Debruçando-nos melhor sobre as vencedoras do “palavra do ano”, é interessante refletirmos sobre o funcionamento social registrado por elas nos anos de 2017 a 2019, pois evidenciam o crescimento e a potência das denúncias virtuais até atingir o ponto máximo: o cancelamento. Primeiramente, temos a palavra do ano de 2017, milkshake duck, que caracteriza “uma pessoa que é inicialmente vista positivamente pela mídia, mas depois é descoberto que tem algo questionável sobre ela, o que causa acentuado declínio em sua popularidade” (tradução nossa). No ano seguinte, como já mencionamos, me too é eleito o termo do ano, abrindo caminho, em 2019, para a vitória do termo “cultura do cancelamento”. Percebe-se, assim, um movimento recorrente caracterizado por esses três termos: uma imagem inicialmente positiva sobre um indivíduo, que é, depois, desmascarada ou acusada como falsa, resultando no declínio da popularidade e, posteriormente (no caso do me too e da cultura do cancelamento), incorrendo em prejuízos mais sérios, como a perda de emprego, de seguidores e até mesmo de patrocínio e o linchamento virtual.

Mas o que exatamente é a cultura do cancelamento? Espécie de descendente do milkshake duck e do movimento #MeToo, a cultura do cancelamento começou como uma forma de chamar a atenção da sociedade para uma causa em busca de justiça social, dando voz a grupos oprimidos e/ou minoritários e exigindo posicionamento de marcas ou empresas. Entretanto, com o passar do tempo, a satisfação diante da punição aplicada sobre os indivíduos cancelados levou os canceladores a sentir como se estivessem fazendo justiça com as próprias mãos e tivessem assumido uma posição de poder no contexto das redes sociais, espaço privilegiado para os cancelamentos, dado que a internet influencia “no modo de vida e condiciona pensamentos e posicionamentos através dos algoritmos […] que condicionam o usuário e o direcionam à sua própria bolha e, a partir disso, apresentam a ele apenas informações que lhe são convenientes, causando uma falsa sensação de que todos ao seu redor pensam igual a ele” (BARBOSA; SPECIMILLE, 2020, p. 14–15).

Em outras palavras,

os “canceladores”, […] em sua maioria, sentem-se na obrigação de “juízes” em meio a um “tribunal social” em que julgam todo e qualquer comportamento, sentenciando o indivíduo a uma “morte social”, rotulando-os e deixando subentendido o desejo de supressão de sua existência, através de mensagens hostis e violentas, negligenciando à vítima o direito à defesa e ao esquecimento de suas falhas” (p. 15).

Apesar de o cancelamento focar mais as figuras públicas, dado que, por ofício, esses indivíduos são levados a expor muito de sua vida profissional e privada à mídia e àqueles que acompanham sua carreira, o ato pode ser voltado também a pessoas que não se submetem a essa superexposição. Isso se deve, segundo Bessa, à “ideia de que apenas as pessoas que foram ‘canceladas’ seriam capazes de cometerem os respectivos erros. Ou seja, uma parcela de indivíduos acredita que se estivesse no lugar do ‘cancelado’, não agiria da mesma forma” (BESSA, 2021).

No fim, as vítimas do cancelamento, após terem seu direito à defesa negado, acabam sendo excluídas da sociedade por determinadas comunidades ou grupos de indivíduos, além de sofrerem punições sociais e até mesmo profissionais severas, frutos de ataques verbais violentos à sua reputação, o que acaba minando seus meios de subsistência atuais e futuros.

Por estar muito ligada a pautas sociais como o racismo e a homofobia, por exemplo, “a maioria dos cancelamentos ocorre por conflitos de opiniões e pensamentos, devido à crença de que existe um ‘certo’ ou um ‘errado’ convencionado na sociedade” (BESSA, 2021). Com base nisso, podemos dizer que o cancelamento, que começou como uma forma de dar voz aos grupos oprimidos, tornou-se um ato de silenciamento e de boicote àqueles que pensam diferente da maioria (ou da ilusão de maioria), levando ao extremo o argumentum ad hominem (uma falácia em que se ataca o indivíduo e não o seu argumento).

Ainda sobre o funcionamento do cancelamento, podemos pensar, como fizeram Brasileiro e Azevedo (2020), o linchamento virtual a partir das fachadas propostas pelo antropólogo Erving Goffman:

“O termo fachada pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular” (GOFFMAN, 2011, p. 13). A linha seria o padrão de atos verbais ou não, através do qual o sujeito se expressa nas situações determinadas (Ibid.). As pessoas assumem uma linha de ação, através da qual constroem e mantêm suas fachadas para fins diversos, dentre eles, evitar o constrangimento (Ibid.) (p. 82–83).

Em outras palavras, de acordo com a metáfora do teatro, nós, enquanto atores, representamos diversos papéis em nosso cotidiano, de acordo com o ambiente em que estamos, as pessoas com quem interagimos etc. de modo a gerenciar as impressões que os outros atores têm de nós. Ao fazermos isso, estabelecemos uma espécie de contrato social com os outros atores e criamos um fluxo de interações sociais que, quando é interrompido, gera confusão, “Afinal, os indivíduos estavam preparados para ações que deixaram de ser apropriadas (Ibid.)” (p. 83). Assim, procurando retomar o fluxo e a normalidade da interação, é aplicado o

ciclo corretivo padrão — um processo normativo do retorno à ordem após a perda da fachada. Esse ciclo seria composto de quatro etapas: desafio, oferta, aceitação e agradecimento. O desafio é através do qual ocorre a perda da fachada, seguido da oferta dos demais ao errante se redimir, a qual seria aceita e agradecida. Após esse processo teríamos a normalidade restabelecida. Porém, o autor estabelece que “as fases do processo corretivo — desafio, oferta, aceitação e agradecimento nos dão um modelo do comportamento ritual interpessoal, mas esse modelo pode ser modificado de forma significativa” (Ibid., p. 29) (p. 83).

De fato, esse modelo é modificado nos casos de cancelamento, nos quais se observa a ausência da etapa de oferta e, consequentemente, de aceitação e agradecimento, e,

a partir do momento em que o sujeito não apresenta mais uma fachada legitimada, os outros podem interpretar como um sinal de que não precisarão mais cumprir o acordo social de considerar os sentimentos do errante (GOFFMAN, 2011). Em analogia, é como se o sujeito errante fosse desumanizado. A partir do momento em que os outros não o reconhecem como igual e digno, a barreira de violentá-lo, mesmo que simbolicamente, fica mais tênue. (p. 88).

Considerando tudo isso, passaremos agora ao estudo de um caso específico de cancelamento que foge à bolha das celebridades e influenciadores digitais, focando o mercado editorial, mais especificamente, o cancelamento de uma pequena editora, a Editora Blue Hope, a fim de analisar o funcionamento do cancelamento a partir de uma perspectiva discursiva. Eis o caso:

A Editora Blue Hope, fundada em 2020 por Nana Oliveira, é uma pequena editora especializada na adaptação de fanfics¹ para obras originais, mais especificamente, fanfics com histórias voltadas “para fantasia de mundos utópicos, abordando temáticas e assuntos de pouco foco no mundo literário” (LOIOLA, 2021, p. 30), protagonizadas pelos integrantes do septeto sul-coreano, BTS.

A escrita de narrativas ficcionais baseadas em uma obra-fonte anterior não é recente, assim como a sua publicação em formato impresso, que pode ser constatada, pelo menos, desde o século XIX, no Romantismo. Entretanto, com o advento da Web 2.0, que possibilitou, entre outras coisas, que os consumidores de conteúdo passassem a também produzir, essas narrativas, que agora figuram sob o nome fanfic, tiveram sua circulação estreitamente vinculada ao digital e às suas plataformas de compartilhamento de conteúdo, como as mídias sociais e até mesmo plataformas de autopublicação, como o Wattpad,² por exemplo, de onde provém boa parte das fanfics publicadas em forma de livros no exterior.³

Apesar de a publicação de fanfics como obras originais já acontecer há algum tempo lá fora, no Brasil esse fenômeno é relativamente recente e teve seu marco em meados de 2020, com o repentino surgimento de pequenas editoras focadas justamente na publicação de histórias de fãs, em especial, de fãs do grupo BTS, conhecidos como ARMY. E o amor dos ARMYs, tanto ficwriters (como são chamados os autores de fanfics) quanto editores, pelo septeto coreano é evidente não apenas nas histórias, que são protagonizadas pelos integrantes do grupo, mas também nos nomes das editoras, fortemente influenciados por títulos de músicas do grupo, como as editoras Euphoria, Whalien, Moonchild, Blue Side, Sea, Mikrokosmos, DNA, entre outras.

Essas editoras, fundadas, em sua maioria, por mulheres jovens (na casa dos 20 a 30 anos) que são fãs do BTS e também ficwriters, viram nos consumidores de fanfics digitais um público que, assim como elas, tem o sonho de ver as obras favoritas publicadas em formato físico.⁴ Esse é um fenômeno já observado em pesquisas como a de Chieregatti (2018), que apontou o fato de que, apesar de terem milhares ou até milhões de leituras em suas fanfics, os ficwriters só assumem o título de “autor” quando têm suas obras publicadas por editoras convencionais, dado que “É inegável que o livro impresso possui um valor simbólico e cultural elevado, pois todos os elementos do livro conferem a ele uma autoridade social (a própria organização do objeto erige sua legitimidade)” (CHIEREGATTI, 2018, p. 16).

De fato, para os consumidores de fanfics, a materialidade dessas obras originais impressas tem valor elevado, fato que é evidenciado pelas produções estéticas de alta qualidade das editoras, que dão atenção especial às capas e também aos brindes que acompanham a compra de cada livro. Essa hipervalorização do livro em formato códice, que já vem de tempos, bem como a aparente obrigatoriedade de brindes que acompanham a obra (uma tendência nessas pequenas editoras de fanfics), coloca em evidência o valor desse livro como um objeto de coleção, um fetiche, uma obra de arte que deve ser bonita, pois embelezará as estantes dos compradores.

Percebemos, assim, a constituição de uma comunidade discursiva, isto é, de “um grupo de sujeitos que exercem certas práticas de cultivo a uma dada semântica que é materializada nos objetos técnicos (álbuns, roupas, acessórios, etc.), e estes são, por sua vez, cultivados por essas comunidades de modo a criar um pertencimento, uma identificação” (AISAWA, 2021, p. 57). Essas práticas têm a ver, também, com os espaços ocupados por essas comunidades e, no caso do fandom ARMY, esses espaços estão muito ligados às mídias sociais, em especial, ao Twitter e ao Instagram, as plataformas mais utilizadas para promover o grupo, e que são, não coincidentemente, as plataformas mais usadas por essas pequenas editoras de fanfics do BTS. Outro ponto que vale destacar é o fato de que as produções de fãs, aí inclusas as fanfics, são, na grande maioria das vezes, construções coletivas ou, ao menos, influenciadas por outros a partir de interações sociais nessas mídias.

Esse grande fluxo de interações entre autor e leitor contribui para o cultivo de amizades e do sentimento de coletividade, de união do fandom, que é um dos grandes responsáveis pelo rápido crescimento dessas pequenas editoras especializadas. Essas jovens empresárias apostam, assim, no apoio da comunidade de que elas mesmas participam para crescer.

Voltando à Editora Blue Hope, em entrevista para a Revista Ciclo (produto da disciplina de Jornalismo Impresso da UFPB), Nana Oliveira, a fundadora da referida editora, contou que abrir uma empresa no ramo editorial era um sonho de sua juventude, mas que só virou uma meta depois de fazer uma pesquisa sobre esse mercado para um trabalho da faculdade de Relações Internacionais. Três meses depois, a editora começou como uma startup⁵ que se dedicava à publicação de fanfics do BTS.

Publicada em julho de 2021, a matéria da Ciclo intitula-se “Editoras independentes trazem renovação ao mercado literário”, o que nos faz pensar sobre o título de “editora independente” que foi atribuído à Blue Hope pela autora e entrevistadora, Maria Gabriella Loiola, mas que não é reivindicado pela editora (nem pela maioria das editoras desse nicho que surgiram a partir de 2020) em nenhuma de suas redes sociais ou site. Para falarmos sobre isso, recorremos à tese de doutorado de Muniz Jr., intitulada “Girafas e bonsais: editores ‘independentes’ na Argentina e no Brasil (1991- 2015)”, na qual fala sobre dois tipos de editores:

De um lado, estão os editores “girafa”, empresários culturais que “mantêm a cabeça no alto e os pés no chão”, denotando sua pretensão dupla de intervenção cultural/intelectual e êxito empresarial/comercial. Do outro lado, estão os editores “bonsai”, expressão com a qual alguns se referem pejorativamente àqueles microempreendimentos editoriais que “requerem muitos cuidados e estão fadados a não crescer nunca” (2016, p. 19).

Apesar de a qualidade de “bonsai” ser tratada, muitas vezes, pejorativamente nesse campo, a característica de se manter pequena e produzir pouco, mas com qualidade, é atraente para as chamadas editoras independentes. Entretanto, não é esse o caso da Blue Hope e da maioria (senão de todas) das editoras que publicam fanfics do BTS, visto que, apesar de serem pequenas, elas visam o crescimento da empresa, com tiragens que não são enormes, mas também não são pequenas, e com a pretensão de participarem de grandes feiras literárias, como a Bienal Internacional do Livro de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo. Assim, apesar da quantidade insuficiente de dados considerados aqui, podemos dizer, a princípio, que as editoras desse nicho são (ou querem ser) editoras girafa, almejando crescimento e reconhecimento no mercado editorial e o ingresso no mainstream. Deste modo, optamos por chamá-las, neste trabalho, de “pequenas editoras” em vez de “editoras independentes”.

Em resumo, a convergência do mercado editorial com o universo dos fãs resultou no fenômeno do surgimento dessas pequenas editoras que atendem a um nicho específico e marginalizado — mas poderoso — e que cultivam e valorizam a interação e as trocas entre si a partir de plataformas comuns ao fandom. Entretanto, assim como essa interação promoveu o rápido crescimento dessas editoras, ela pode derrubá-las com a mesma velocidade. Foi o caso da Editora Blue Hope, que sofreu uma queda brusca de popularidade a partir de agosto de 2021, apenas um mês após a publicação da matéria na Revista Ciclo, devido ao exposed⁶ feito no Twitter pela usuária @mutacyon, autora de uma das obras publicadas pela empresa. Nessa denúncia, feita no dia 27 de agosto por meio de uma sequência de 24 tuítes, a usuária relata sua experiência negativa no processo de adaptação de sua obra para livro físico — processo do qual ela foi excluída e impedida de opinar ou, sequer, de desaprovar o serviço já feito — e sua discordância em relação ao modo de funcionamento da editora — que peca na comunicação com os clientes.

Apesar do ato de denunciar más condutas, serviços ou atendimento e má qualidade do produto, entre outros problemas, ser uma prática recorrente e antiga, não podemos deixar de pontuar que a difusão da internet em escala global promove a “ampliação exponencial da divulgação do erro e […] negação das ofertas de remissão” (BRASILEIRO; AZEVEDO, 2020, p. 83). Assim, a denúncia das práticas e do tratamento da Editora Blue Hope para com a autora gerou muita comoção nos fãs dela e, mais amplamente, nos fãs de fanfics do BTS em geral, fato evidenciado pela quantidade de “curtidas”, “retweets” e “comentários” que a publicação recebeu (3.592 curtidas, 339 comentários e 876 retweets),⁸ com a maioria esmagadora das respostas se solidarizando e buscando acolher a vítima.

Essa primeira denúncia desencadeou, pouco tempo depois, novos exposeds por parte de ex-funcionários, autores e clientes e uma onda massiva de reclamações contra a empresa — dentre elas, sobre o atraso no envio dos livros, a má qualidade de alguns produtos, a falta e/ou a dificuldade de comunicação com a empresa, o destrato com os funcionários (que estavam trabalhando mesmo com o pagamento atrasado), a falta de profissionalismo e preparo da dona da editora, a dificuldade no cancelamento das compras e no reembolso etc. –, culminando no distrato de diversos autores, que foi feito com muita dificuldade, dados os problemas de comunicação com a editora, sendo necessária até a criação de uma hashtag⁹ reivindicando a libertação dos autores de seus contratos, a #freeautoresbluehope.

Alguns meses depois, em novembro, alguns usuários encontraram o nome da Editora Blue Hope na lista de expositores da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro 2021, que aconteceria nos dias 3 a 12 de dezembro, o que os indignou a ponto de criarem um abaixo-assinado on-line pela retirada da editora do evento, que recebeu 1.682 assinaturas. Alguns dias depois, em 25 de novembro, usuários relataram ter recebido um e-mail da editora com o seguinte título: “Seu pedido #***** não vai ser cancelado, porque roubamos seu dinheiro!”. Nesse mesmo dia, a empresa comunicou, por meio de um stories¹⁰ em seu perfil no Instagram, que sua conta de e-mail havia sido hackeada e que foi feito um boletim de ocorrência contra os responsáveis.

Após enfrentar todos esses problemas, a empresa acabou não comparecendo à Bienal do Livro e não se manifesta mais nas redes sociais desde dezembro de 2021, tendo sido efetivamente silenciada, ou melhor: cancelada.

A cultura do cancelamento, que, como já mencionamos, ganhou esse nome recentemente, está muito ligada às mídias sociais, mas já tinha espaço no universo dos fãs com a “ripagem” de fanfics, ato que “consiste em criticar excessivamente fanfics julgadas ruins ou desrespeitosas com o texto-fonte (mesmo que não intencionalmente)” (AISAWA, 2021, p. 62). Vemos, assim, que certas práticas dos fandoms e do meio digital em geral estão se impondo no funcionamento do mercado editorial tradicional.

Todo esse percurso de cancelamento da Editora Blue Hope atesta o padrão descrito a seguir por Brasileiro e Azevedo, com exceção do “pedido de desculpas do errante”, que nunca aconteceu:

Há um padrão entre os elementos interconectados: situação de ruptura da fachada (errada); exposição pública nos “tribunais digitais”; posicionamentos do “júri”; construção em cadeia dos sentimentos de moralidade contra o errante; pedido de desculpas do errante; omissão da oferta à remissão; efeitos no plano material ou biossocial; cancelamento da pessoa (2020, p. 91).

A seguir, analisaremos alguns tuítes sobre o caso da Editora Blue Hope a fim de verificarmos os “posicionamentos do ‘júri’” e como eles contribuem para a “construção em cadeia dos sentimentos de moralidade contra o errante” a partir da perspectiva discursiva. Para tanto, começaremos com o exposed que deu início ao processo de cancelamento, publicado pela usuária @mutacyon, autora da obra “Glitter”, e passaremos, em seguida, à análise de alguns comentários em resposta a essa postagem. Devido à extensão da referida denúncia não a reproduziremos integralmente aqui, priorizando uma análise menos minuciosa e mais objetiva. O primeiro ponto a ser destacado é o fato de que, apesar de a publicação poder ser caracterizada como uma denúncia, um exposed, a usuária diz se tratar de um comunicado, enfatizando seu caráter informativo. Além disso, ela não menciona em momento algum o nome da editora contra a qual estava prestando queixa, chamando-a simplesmente de “editora em questão” e “editora”, o que nos leva a pensar que, por se tratar de um comunicado direcionado principalmente aos seus fãs, o nome da empresa responsável pela publicação de seu livro já é de conhecimento de todos. Outra hipótese para essa omissão pode ter relação com o fato de ela ter contado com o suporte de um advogado, que, segundo ela, foi quem a aconselhou a fazer a publicação.

Em seguida, ela começa a falar sobre suas discordâncias a respeito do tratamento (ou da falta dele) da editora para com os clientes, expondo o quanto isso afetava as autoras, que nada tinham a ver com o funcionamento da empresa. O próximo tópico abordado foi o processo de adaptação da obra em si, processo do qual não lhe foi permitido participar, configurando uma relação unilateral e impositiva por parte da editora. Apesar de priorizar, neste primeiro momento, a exposição mais objetiva dos fatos, por ser um texto escrito na primeiro pessoa do singular, é mais subjetivo, transparecendo o posicionamento da autora diante dos acontecimentos, principalmente em falas como “e estou tão cansada que não tenho mais energia para retrucar”, “Isso fez todo o meu ânimo com o livro simplesmente desaparecer”, “e me angustia ver tantos leitores me pedindo uma luz e não poder dar nada”, entre outros.

Por fim, a usuária explicita sua intenção ao fazer esse comunicado ao público (“desvincular meu nome das últimas atitudes da editora”) e passa para um relato mais pessoal e emotivo de tudo o que fez para que a publicação desse certo.

Em resposta a esse relato foram contabilizados 339 comentários, a maioria esmagadora manifestando apoio à vítima por parte de fãs, de influenciadores digitais e até mesmo de pessoas que não conhecem a autora nem o seu trabalho, mas tiveram contato com essa denúncia. Percebemos, assim, um movimento de acolhimento da autora por meio de falas como “nem imagino como ta sendo pra vc e sinto mt mt mt mesmo por isso :(”, “eu sinto muito que esteja passando por essa situação […] boa sorte, estou torcendo por você”, “Tadinha da Julls , realmente não é culpa dela. […] independente de tudo darei amor a escrita de Glitter”, “você é uma autora incrível. você e glitter não merecem isso”, “Eu não te conheço e nem a sua obra, mas meu coração doeu lendo cada uma das suas palavras, consegui sentir sua aflição e dor em cada sílaba”, “Não tenho intimidade c vc e comecei a te seguir agora, mas se precisar de qualquer coisa pode contar comigo”, “não entendo como essas coisas funcionam, mas espero que vc consiga desvincular vc e sua obra totalmente dessa editora. fica bem! 💜”, “Nossa, meu coração doeu de ler tudo isso, quanto descaso, humilhação e irresponsabilidade com você, sua história, e com seu sonho”, entre outras.

Além disso, é possível encontrar, em meio aos comentários de apoio e solidariedade (agora, não mais apenas da denúncia de @mutacyon, mas também de @mylo42_, ex-funcionária da empresa), falas com o intuito de desqualificar a Editora Blue Hope e/ou desvinculá-la do resto do mercado editorial, considerando-a como algo diferente de uma editora — “golpistas”, “caloteira”, “mancha a imagem das EDITORAS DE VERDADE”, “A Blue hope deixou de ser uma empresa, deixou de ser uma editora a muito tempo” — ou como um péssimo exemplar de editora — “editora de merda”, “como é ser a pior editora do mundo?”, “editora lixo”, “Um comportamento inaceitável vindo de uma editora que lida com os sonhos dos escritores”, “que nojo dessa editora” –, evidenciando uma possível tentativa de proteger o ethos discursivo do mercado editorial tradicional, que se coloca como um campo superior, das Artes, intocável e imaculável.

Tais falas evidenciam, assim, o fato de que para cancelar uma pessoa ou uma instituição não basta simplesmente fazer uma denúncia ou uma reclamação, é preciso comover as pessoas, fazê-las solidarizarem-se com a(s) vítima(s) de modo que se frustrem com a(s) injustiça(s) cometida(s) e se unam pela reivindicação de uma punição. Em suma, é necessária a construção de um sentimento coletivo de moralidade entre os participantes contra a parte errante, dado que “os julgadores se apoiam e retroalimentam entre si o sentimento de legitimação da antagonização” (BRASILEIRO; AZEVEDO, 2020, p. 90). E essa antagonização acontece de um modo específico: os integrantes do “júri” falam em nome da vítima, em detrimento da parte errante.

Para finalizar, é preciso destacar que a chamada cultura do cancelamento, tal como é entendida hoje, apesar de consistir em um ato em prol de certa visão de justiça, traz mais malefícios do que benefícios para a vida em sociedade, visto que apresenta “um risco para o debate saudável, já que ao estabelecer o que pode e o que não pode ser dito promove retrocessos e vai contra a luta progressista para dar voz a todos” (BESSA, 2021). Além disso, o cancelamento interrompe o fluxo de interações sociais ao recusar ao cancelado a possibilidade de se redimir pelo seu erro ou inadequação, tendo sua fachada retirada e sendo levado a ocupar uma posição de inferioridade em relação aos julgadores.

Neste mundo tomado pelo digital, que não só torna passível como estimula a velocidade com que as informações — mesmo (e, por vezes, principalmente) as falsas — circulam, mostra-se necessário adotar uma navegação mais responsável e crítica, que não procure fechar as portas para os errantes (que, por vezes, nem cometeram erros), pois, como disse Kim Namjoon, líder do BTS, no discurso para a Assembleia Geral da ONU referenciada no início, “[…] eu posso ter cometido um erro ontem, mas o eu de ontem ainda sou eu. Hoje, eu sou o que sou com todos os meus defeitos e erros. Amanhã, eu posso ser um pouco mais sábio, e isso também será eu. Essas falhas e erros são o que eu sou, compondo as estrelas mais brilhantes da constelação da minha vida”. A cultura do cancelamento, em vez de apontar um erro e dar ao errante a possibilidade de se redimir e de se tornar mais sábio, de aprender com os próprios erros e transformá-los em estrelas que enfeitam a constelação de sua vida, apenas procura puni-lo violentamente por sequer ousar errar, cometendo uma injustiça social em prol de um movimento por justiça social.

Notas

¹ Contração de fan fiction, fanfics são, como o próprio nome já diz, ficções escritas por fãs, geralmente baseadas em personagens, ambientes, casais e/ou eventos de uma obra-fonte canônica.

² Trata-se de uma plataforma canadense de autopublicação e compartilhamento de histórias, que abriga tanto narrativas originais quanto derivadas de outras obras (fanfics). Disponível em: https://www.wattpad.com/. Acesso em: 6 mar. 2022.

³ Um caso emblemático de fanfic que foi publicada por uma editora convencional como uma obra original é Cinquenta tons de cinza, de Erika Leonard James, derivada das obras da Saga Crepúsculo.

⁴ É interessante retomarmos aqui a constatação de Bourdieu (2018, p. 221–222) de que “é possível afirmar, com base em uma análise documental e uma pesquisa etnográfica, que existe uma correspondência expressiva entre as características do editor e as características de sua editora. E assim se pode compreender a lógica segundo a qual essa correspondência se estabelece: há maior probabilidade de as pequenas editoras serem dirigidas por jovens mulheres, de origem social relativamente elevada, dotadas de uma forte cultura literária e, sobretudo, muito engajadas intelectual e afetivamente no ofício”. De fato, o fenômeno aqui analisado segue essa direção, dado que essas editoras mulheres reconhecem grande valor nas literaturas fora do mainstream, aqui, as fanfictions, consideradas marginalizadas pela Literatura e pela sociedade em geral.

⁵ De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), “uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza”. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/o-que-e-uma-startup,6979b2a178c83410VgnVCM1000003b74010aRCRD. Acesso em: 6 mar. 2022.

⁶ Do inglês “exposto(a)”, exposed designa “Relatos que expõem crimes ou mau comportamento, tanto de figuras públicas quanto de gente comum”. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/13/exposed-entre-o-acolhimento-das-vitimas-e-o-linchamento-virtual-dos-reus.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 6 mar. 2022.

⁷ Rede social de microblog criada em 2006, que permite a publicação de textos de até 280 caracteres chamados de tweets (ou tuítes, na forma aportuguesada).

⁸ Números referentes ao dia 15 de abril de 2022.

⁹ Trata-se de um tipo de hiperlink para determinado assunto, indexado pelos mecanismos de busca da plataforma, no caso, do Twitter.

¹⁰ Um tipo de publicação com “validade” de 24 horas. Passado esse período, a publicação é indisponibilizada automaticamente para o público.

Referências

AISAWA, Karen Naomi. BTS Universe: um estudo do espaço associado em uma narrativa transmídia. 2021. 142 f. Monografia (Graduação em Linguística) — Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2021.

BARBOSA, Otavio Luis; SPECIMILLE, Patricia. A internet nunca esquece. PET Economia Ufes, v. 2, p. 13–17, 2020.

BESSA, Liz. Cultura do cancelamento: o que é? Politize!, 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/cultura-do-cancelamento/. Acesso em: 9 abr. 2022.

BIRO, Janos. A representação do eu na vida cotidiana. Contrafatual, 2019. Disponível em: https://contrafatual.com/2019/07/08/a-representacao-do-eu-na-vida-cotidiana/. Acesso em: 10 abr. 2022.

BRASILEIRO, Felipe Sá; AZEVEDO, Jade Vilar de. Novas práticas de linchamento virtual: fachadas erradas e cancelamento de pessoas na cultura digital. Revista latinoamericana de ciencias de la comunicación, v. 19, n. 34, p. 80–91, 2020. Disponível em: https://revista.pubalaic.org/index.php/alaic/article/view/640. Acesso em: 10 abr. 2020.

CHIEREGATTI, Amanda Aparecida. Mídium e gestão dos espaços canônico e associado

nas plataformas colaborativas Wattpad e Widbook. 2018. 241 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) — Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2018.

BOURDIEU, Pierre. Uma revolução conservadora na edição. Política & Sociedade, v. 17, n. 39, p. 198–249, 2018.

LOIOLA, Maria Gabriella. Editoras independentes trazem renovação ao mercado literário. Ciclo, n. 3, p. 30–31, 2021.

MUNIZ JR., José de Souza. Girafas e bonsais: editores “independentes” na Argentina e no Brasil (1991- 2015). 2016. 335 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-28112016-103559/pt-br.php. Acesso em: 17 abr. 2022.

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Karen Naomi Aisawa

Olá! Seja muito bem-vindo(a)! Neste perfil trago algumas reflexões provenientes de disciplinas do curso de bacharelado em Linguística de que participo(ei).