A Rainha do Crime no campo literário

Karen Naomi Aisawa
8 min readDec 7, 2020

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Como pesquisadores da área de Humanidades, é crucial para nós a habilidade de descrever os objetos que estudamos. Na área dos estudos linguísticos, em especial, a exigência de tal técnica é, talvez possamos dizer, ainda mais elevada, pois escrevemos mobilizando a língua que estudamos e esse ato de descrição é, para nós, já um ato de análise. Entretanto, pensando as diversas coisas no mundo, acredito ser inequívoco dizer que há coisas mais fáceis e outras mais difíceis de se descrever: é clara a diferença entre descrever uma pessoa ou objeto e descrever um sentimento, uma sensação, por exemplo (mas, claro, essa facilidade ou dificuldade varia de pessoa para pessoa).

Pensando nisso, me peguei refletindo sobre a dificuldade de descrever o que Dominique Maingueneau chama discurso constituinte, conceito já brevemente apresentado em outra postagem aqui no Medium, para a disciplina “Literatura e mercado editorial”. Recuperando um trecho dessa postagem, temos que discurso constituinte é

um [tipo de] discurso que se põe no mundo como originário, isto é, como se não houvesse nada antes dele e, portanto, é inquestionável; não precisa se explicar, pois a sua própria existência já é justificada. Trata-se, assim, de um discurso autoritário, logo, exclusivo, uma vez que apenas alguns indivíduos e/ou instituições, coletivos, estão autorizados a portá-lo.

O discurso literário, objeto de nossa reflexão aqui, é um exemplo de discurso constituinte, uma vez que se coloca no mundo como se não houvesse nada que lhe fosse anterior senão a sua fonte primária, uma espécie de entidade máxima à qual se submete, chamada Arte (com “A” maiúsculo!). Perguntas comuns referentes a coisas no mundo, como por exemplo “o que é um cachorro?” ou “o que é um mamífero?”, assumem, no caso dos discursos constituintes, a condição de blasfêmia, heresia, como se questionar “o que é Literatura?”, bem como sua máxima, “o que é Arte?”, fosse um insulto à própria existência dessas entidades (de valor) divinas. Entretanto, esse valor do literário não é imanente, mas é produzido materialmente, conforme uma certa circulação e potência de pregnância desses discursos.

Dado isso, ousaremos, nesta postagem, perguntar-nos afinal o que é o literário e, a partir desse entendimento, circunscrito na base teórica da Análise do Discurso francesa, em especial, nos estudos de Dominique Maingueneau sobre o literário, pretendemos uma breve reflexão sobre o nosso objeto editorial selecionado para reedição: o Box 1 da Coleção da Agatha Christie, publicado pela Editora Harper Collins e apresentada na postagem anterior.

De modo geral, podemos dizer que o literário é um campo discursivo, tal como pensado por Maingueneau. Isso implica dizer que o literário é um sistema dinâmico configurado a partir das relações estabelecidas entre os atores da rede de aparelhos (pessoas ou instituições que participam desse sistema), que assumem, assim, uma posição nesse campo, mantendo um equilíbrio instável. Entretanto, tal campo discursivo não é imaterial, está sempre ancorado à produção de um arquivo, isto é, de uma memória interna das filiações que um texto estabelece com outros textos do campo ou com atores da rede de aparelhos.

Ademais, de acordo com Maingueneau, o literário se diferencia de outros regimes discursivos, entre outras coisas, por seu modo de estabelecer: i) uma certa relação com a língua; ii) uma certa forma de textualizar e iii) uma certa produção de subjetividade. Desses três, falaremos neste post apenas do primeiro, que diz respeito à língua mobilizada pelo literário. A esse respeito, Maingueneau fala sobre a interlíngua, um conceito que diz respeito a uma certa região da língua que é mobilizada no momento de enunciação. Trata-se, para ele, da “escavação de um hiato irredutível” em relação a uma suposta língua falada por todos, isto é, da mobilização, durante o ato de enunciação de um discurso literário, de uma região da língua que se difere, se distancia daquela língua falada cotidianamente. (E aqui, deixo um convite para a leitura de outro post, em que discorri um pouco Sobre interlíngua e tradução).

Por fim, ainda sobre a diferença do discurso literário para outros tipos de discurso, podemos dizer que o primeiro não possui quaisquer objetivos ou pretensões decorrentes de sua existência, ao contrário de outros, que pretendem uma explicação sobre fenômenos do mundo (discurso científico), uma instrução ou prescrição (discursos instrucionais), a firmação de um contrato (discursos institucionais)… Em suma, o discurso literário é um sistema dinâmico, e estudá-lo, bem como estudar objetos editoriais e instituições do campo discursivo literário, é tentar descrever e precisar a posição que ocupam nesse sistema.

Delineada nossa interpretação acerca do literário, passaremos em seguida a uma breve reflexão acerca de nosso objeto de reedição, em uma tentativa de precisar o lugar que ele ocupa no campo literário. De saída, começaremos pensando a rede de aparelhos, que diz respeito às pessoas ou instituições que atuam como mediadores (tradutores, editores e livreiros, por exemplo), intérpretes e avaliadores (revisores, críticos e professores, dentre outros) ou cânones (antologias, manuais, coleções, ranqueamentos, prêmios literários…). Assim, é importante destacar, primeiramente, que o objeto por nós estudado trata-se de uma versão traduzida do inglês, língua na qual foi escrita originalmente por Agatha Christie, também conhecida como Rainha do Crime por suas incríveis tramas detetivescas. Autora consagrada no meio dos romances policiais, a britânica possui mais de oitenta livros publicados sob seu nome (e alguns sob o pseudônimo de Mary Westmacott), alguns dos quais já caíram em domínio público.

Composto por três livros em capa dura, esse primeiro box, lançado em 2016, marca o início desta nova coleção (dentre outras tantas) de obras da Rainha do Crime. A caixa, de cor temática roxa, inclui as obras “Um corpo na biblioteca”, publicada originalmente em 1942 e traduzida, nesta versão, por Edilson Alkimin Cunha; “Morte no Nilo”, publicada originalmente em 1937 e traduzida por Newton Goldman; e, por fim, “Assassinato no Expresso do Oriente”, publicada originalmente em 1934 e traduzida por Archibaldo Figueira. Todas as três obras foram editadas pela HarperCollins Brasil e impressas na China em 2016, mas contam com equipes ligeiramente diferentes na edição de cada obra da coleção: os cargos “Publisher”, ocupado por Kaíke Nanne, “Editor de aquisição”, ocupado por Renata Sturm, “Produção”, ocupado por Adriana Torres, Ana Carla Souza e Thalita Aragão Ramalho, “Projeto gráfico de miolo”, ocupado por Leandro B. Liporage, “Diagramação”, ocupado por Leandro Collage e “Projeto gráfico de capa”, ocupado por Maquinaria Studio, são iguais para todos os volumes apresentados, mas os cargos de “Preparação de originais” e de “Revisão” são diferentes em cada uma das obras. Para começo de conversa, apenas “Morte no Nilo” possui, no colofão, o cargo de “Revisão” evidenciado, que é ocupado por Rachel Rimas. Os outros dois livros possuem, no lugar, o cargo de “Preparação de originais”, que é ocupado, em “Um corpo na biblioteca”, por Gustavo Penha, José Grillo e Bete Muniz, e em “Assassinato no Expresso do Oriente”, por Gustavo Penha, José Grillo e Fátima Fadel. Tal disparidade na equipe de produção dos livros que compõem um mesmo box nos faz refletir sobre a (falta de) padronização, característica desse tipo de coleção.

Assim, em suma, pensar a rede de aparelhos de que participa o nosso objeto editorial implica considerar que é uma obra editada e publicada sob o nome de determinada editora (no caso, estrangeira, mas que atua, no Brasil, sob o nome HarperCollins Brasil) — que ocupa um certo lugar no campo literário brasileiro e, mais amplamente, internacional, sendo uma das “cinco maiores editoras de língua inglesa” — , traduzida por determinados tradutores (que podem ser também autores), consagrados ou não, produzida por determinados profissionais, renomados ou não, ocupando determinados cargos e constituindo uma coleção, que é, por si só, a consagração de um cânone no campo literário, pois coleções não surgem sem uma demanda, sem um alto valor incutido.

Isso nos faz pensar também a construção da figura de autor de Agatha Christie, sobre a qual falaremos mais em postagem futura, mas que adiantamos, aqui, tratar-se da autora de ficção mais vendida do mundo, com mais de 4 bilhões de cópias vendidas ao longo dos séculos XX e XXI, reconhecida, ainda em vida (e isso não é mero detalhe, pois muitos autores se consagram postumamente), como a Rainha do Crime. Sua obra mais vendida, “Ten little niggers” (1939) — traduzida para o português, inicialmente, como “O caso dos dez negrinhos” e, posteriormente (talvez por questões raciais?), como “E não sobrou nenhum”, seguindo o título da versão estadunidense da obra, “And then there were none” — , é também o romance policial mais vendido da história. Apenas isso já nos possibilita precisar a posição que a autora ocupa no campo discursivo literário: central, pois é amplamente reconhecida e consagrada, e dominante, o que é incrível, visto que, já falecida, a Rainha do Crime não pode mais escrever e muito menos publicar novas obras, o que, em tese, abriria caminho para publicações de novos escritores. Entretanto, vemos atualmente que, em vez de publicar obras sob sua autoria apenas, há autores recentes que preferem filiar-se à tradição constituída por Agatha Christie e, consequentemente, provar um pouco de sua fama, como vemos, por exemplo, no caso de Sophie Hannah, que se filia à Rainha a partir da explicitação de seu nome na capa de seus livros, como observável na imagem:

Além disso, Hannah também mobiliza o famoso detetive belga, Hercule Poirot (cujo nome se encontra destacado na parte superior direita das capas), criado por Christie, para a constituição de suas obras, como se fossem uma continuação do universo criado pela Rainha do Crime. Deste modo, tais atos nos suscitam reflexões sobre o arquivo constituído no campo literário, além de questionamentos como, por exemplo, “quem é Sophie Hannah para ser publicada sob o nome da Rainha do Crime?”, “com que direito Sophie Hannah, ou seu agente literário ou editora, reivindica o uso do nome da Rainha do Crime?”, “Sophie Hannah conseguirá lidar com o peso que é carregar o nome da Agatha Christie?”, “Sophie Hannah realmente conseguirá fazer jus ao nome da Rainha do Crime ou acabará por ‘maculá-lo’?”.

Com essa breve reflexão, encerro esta postagem semanal, que já se estendeu além do previsto.

Até a próxima!

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina optativa “Discurso literário: criação, edição e consumo”, ministrada por Luciana Salazar Salgado.

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