Sobre a textualização de “Assassinato no Expresso do Oriente”, de Agatha Christie

Karen Naomi Aisawa
5 min readDec 12, 2020

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Na postagem anterior, discorremos brevemente sobre o funcionamento do sistema literário e defendemos que ele se difere de outros regimes discursivos, entre outras coisas, por seu modo de estabelecer i) uma certa relação com a língua, ii) uma certa forma de textualizar e iii) uma certa produção de subjetividade. Dado isso, mostra-se relevante discutirmos, a seguir, sobre a “certa forma de textualizar” a obra literária, tomando como base de análise, como de praxe, nosso objeto editorial a ser reeditado, o Box 1 da Coleção Agatha Christie, publicada pela HarperCollins Brasil em 2016, considerando, mais especificamente, a obra “Assassinato no Expresso do Oriente”.

Comecemos discorrendo brevemente sobre as cenas da enunciação, conceituadas por Dominique Maingueneau para pensar as tais formas de textualização de que falamos. De acordo com essa teoria, as cenas da enunciação dividem-se em quadro cênico e cenografia, sendo o primeiro constituído por cena englobante, isto é, o tipo de discurso (por exemplo, discurso literário, discurso religioso, discurso acadêmico…) e cena genérica, isto é, os regimes de textualização, os gêneros discursivos que delimitam as formas de textualização (por exemplo, conto, romance, matéria jornalística, poema…); já a cenografia diz respeito à textualização em si, ao texto enunciado, realizado.

Dado isso, podemos dizer, de modo amplo, que a obra “Assassinato no Expresso do Oriente” tem como cena englobante o discurso literário, e como cena genérica o romance policial publicado em formato códice. A partir dessa constatação do quadro cênico da obra de Christie, podemos pensar sua cenografia, isto é, o modo como foi textualizado: superficialmente falando, trata-se de uma obra de extensão média (quase 200 páginas), com muitos trechos de diálogo que se intercalam aos relatos de um narrador onisciente, que não participa da história.

Escrita originalmente em inglês, a obra mobiliza uma interlíngua, isto é, uma região da língua, que se pretende precisa, objetiva (supralíngua), principalmente nas cenas de entrevistas ou interrogatórios dos suspeitos. Entretanto, há também, em passagens mais localizadas, a mobilização de uma infralíngua, ou seja, de um linguajar que se pretende opaco, dúbio, como por exemplo, quando a autora descreve o apito do trem como um “grito comprido, melancólico”, ou até mesmo no uso dos pronomes possessivos “seu/sua”, que, em alguns casos, aparecem mais de uma vez em uma mesma sentença referindo-se a pessoas diferentes — um problema de tradução que atrapalha, ainda que mínima e temporariamente, a compreensão do trecho.

Por outro lado, podemos pensar também os plurilinguismos mobilizados para a constituição da narrativa, em especial, o plurilinguismo externo, que diz respeito ao jogo de idiomas estrangeiros estabelecidos dentro de uma mesma obra. No caso deste romance de Agatha Christie, bem como de todos os outros protagonizados por Hercule Poirot, é evidente um certo jogo com o francês, presumidamente, a língua materna de Poirot, dadas as diversas falas esporádicas que o protagonista solta nessa língua ao longo do romance. Vale ressaltar também que tais falas não são traduzidas em nenhum momento do livro, nem mesmo em notas de rodapé (que são praticamente inexistentes, visto que há, nesta obra, uma única nota do editor, esclarecendo o fato de que Constantinopla é a “Atual Istambul (N. E.)”), exigindo do leitor certo conhecimento prévio do idioma, ou um dicionário ou buscador para consultar/pesquisar.

Já em relação ao plurilinguismo interno, referente ao jogo entre os vários registros de uma mesma língua, podemos pensar um caso específico desta obra, a diferença entre “to kill” e “to bump off” na língua inglesa, que se perde com a tradução para o português. Explico: o primeiro termo é utilizado para expressar o sentido de “trazer/levar à morte, extinguir”, como em “Smoking kills more people each year than alcohol and drugs combined” (Fumar mata mais pessoas por ano que o álcool e as drogas combinadas), por exemplo. Já o segundo termo trata-se de uma gíria que significa especificamente “assassinar”.

— Tenho, talvez, alguma coisa para acrescentar ao que já conhecem — retrucou Poirot. — É que M. Ratchett falou comigo ontem. E, tanto quanto pude entender, disse-me que sua vida estava em perigo.

Bumped offfoi a expressão americana que usou, não? — perguntou Bouc. — Então não fou uma mulher. É um gângster, um pistoleiro (CHRISTIE, 2016, p. 40).

Considerando a conclusão a que chegou Bouc, diretor da Compagnie Internationale des Wagons Lits, inferimos que “bumped off” é um termo normalmente utilizada por gângsters e pistoleiros, possivelmente uma gíria. Entretanto, na versão brasileira, traduzida, toda essa nuance de sentidos foi perdida (possivelmente invalidando a conclusão de Bouc) e, diferente do que se poderia esperar, não há nenhuma nota explicativa sobre esse fato em todo o livro, ficando a cargo do leitor curioso.

Por fim, podemos discorrer também sobre a escrita da autora, geralmente composta por frases não muito longas e descrições concentradas em certos pontos, sem exageros, o que poderia tornar a leitura cansativa. Deste modo, tem-se uma escrita agradável e, de certo modo, simples, como a escrita das light novels, por exemplo. Conhecidas como “romances rápidos”, as light novels são obras que normalmente contam com ilustrações no estilo mangá na capa e em certas páginas do livro, um típico gênero literário japonês de fácil leitura.

Enfim, a obra da Rainha do Crime aqui analisada sensibiliza, assim, para uma leitura imersiva e simples, mas engenhosa, com uma trama que alude a um crime real, o sequestro e assassinato de Charles Augustus Lindbergh Jr., na época com 1 ano e 8 meses de idade. Entretanto, como constata Luiz Santiago em crítica publicada no Plano Crítico, diferente da vida real, na obra fictícia

as pessoas que tiveram o coração quebrado e viram uma família inteira ser despedaçada, uma bebê morta e outras mortes indiretas causadas por esta infâmia, tomaram a justiça para si e resolvem fazê-la com as próprias mãos.

Por hoje, paro por aqui. Na próxima postagem, discorrerei mais detidamente sobre a construção e gerenciamento da figura de autor de Agatha Christie, tema especialmente aguardado por mim desde o início da disciplina.

Até breve!

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina optativa “Discurso literário: criação, edição e consumo”, ministrada por Luciana Salazar Salgado.

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Karen Naomi Aisawa

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