Sobre a construção da figura de autor de Agatha Christie

Karen Naomi Aisawa
12 min readDec 20, 2020

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Já discorri em postagem anterior, respeitando a brevidade introdutória presumida de uma escrita semanal, sobre a construção da autoria de Agatha Christie, a mundialmente reconhecida Rainha do Crime. Nessa mesma publicação, prometi, a certa altura da reflexão, uma postagem mais detalhada sobre o assunto, e assim, cá estou para cumprir minha promessa e falar sobre esse tema que tanto tem me intrigado desde o primeiro encontro desta “disciplina”.

Para tanto, julgo relevante retomar, neste momento, um pouco sobre a autora em questão, pois trata-se da

[…] autora de ficção mais vendida do mundo, com mais de 4 bilhões de cópias vendidas ao longo dos séculos XX e XXI, reconhecida, ainda em vida (e isso não é mero detalhe, pois muitos autores se consagram postumamente), como a Rainha do Crime. Sua obra mais vendida, “Ten little niggers” (1939) — traduzida para o português, inicialmente, como “O caso dos dez negrinhos” e, posteriormente (talvez por questões raciais?), como “E não sobrou nenhum”, seguindo o título da versão estadunidense da obra, “And then there were none” — , é também o romance policial mais vendido da história.

[…] consagrada no meio dos romances policiais, a britânica possui mais de oitenta livros publicados sob seu nome (e alguns sob o pseudônimo de Mary Westmacott), alguns dos quais já caíram em domínio público.

Dadas as informações apresentadas, proponho para esta reflexão (que se pretende breve) uma análise da construção da autoria de Agatha Christie a partir do estudo de algumas capas de livros sob sua autoria, a começar, é claro, pelos livros da coleção escolhida para ser reeditada, em especial, os livros do Box 1, objeto inaugural dessa coleção publicada pela HarperCollins Brasil em 2016.

A respeito dessas capas, gostaria de destacar os seguintes pontos (ou tecnemas, unidades técnicas mínimas):

  • Tamanho das fontes: percebe-se, logo de cara, a enorme diferença de tamanho das fontes do título e do nome da autora. Enquanto o nome da autora ocupa praticamente toda a metade superior da capa, o título da obra, que deveria ser o destaque, ocupa, no máximo, metade do espaço ocupado pelo nome de Christie, ou seja, um quarto da capa.
  • Tipografia: enquanto o título de cada obra é escrito com uma tipografia fina e, de certo modo, delicada, o nome da autora é escrito com uma fonte grossa e, portanto, chamativa, sobrepondo-se ao título. E, como se não bastasse, as letras são acompanhadas de sombras e de um efeito de profundidade.
  • Disposição gráfica: acredito ser normal dizer que quando pegamos um livro o título geralmente fica localizado no centro da capa ou mesmo na parte superior, sendo então seguido do nome de seu autor. Claramente, este não é o caso aqui, já que é impossível centralizar o título sem sobrepor parte das belíssimas (mas talvez destoantes do ethos da obra) ilustrações ou mesmo reduzir o espaço que ocupam na capa.
  • Ilustrações: apesar de amar as ilustrações das capas dessas obras, que esbanjam cores e brincam com as linhas (as mais finas encontrando as mais grossas, resultando em efeitos de profundidade e de destaque), parece-me claro neste momento (após várias reflexões com amigos) o fato de que elas competem com o título e com o nome da autora pela atenção do leitor, o que explicaria, possivelmente, a tipografia chamativa escolhida para esse segundo elemento.

Dadas as considerações apresentadas, poderíamos, já neste momento, tirar algumas conclusões sobre a figura de autor da Rainha do Crime. Entretanto, resguardemo-nos deste ato por ora e passemos às próximas capas:

Atentando-me novamente às tipografias selecionadas para cada capa, identifico aqui um clássico: a estilização do nome da autora nessa fonte que simula caligrafia. A partir da mobilização dessa fonte, é possível até mesmo identificarmos a editora responsável por sua publicação, no caso, a Editora L&PM, que a mantém como padrão para a estilização do nome da autora. Deste modo, ao adotá-la em todas as suas publicações de Christie, a editora acabou por criar um arquivo, uma memória, uma filiação em relação a essa fonte, que segue aquela utilizada pela Editora Witness Impulse, uma das inúmeras subsidiárias da companhia global HarperCollins Publishers, como observável nos exemplares abaixo, retirados do site oficial da HarperCollins Publishers:

Além disso, como nos exemplares da HarperCollins Brasil, há maior destaque ao nome da autora em relação ao título, tanto na versão brasileira da L&PM quanto na versão em inglês da Witness Impulse, embora essa discrepância seja amenizada pelo uso de uma fonte mais delicada para o nome da autora e, no caso da versão americana, também pela não tão gritante diferença em relação ao tamanho da fonte do título.

Ainda pensando as filiações a que nos remetem as tipografias, destaco aqui as publicações da Editora Globo Livros, subsidiária da Editora Globo, que também produzem filiações (super reconhecíveis) a partir do uso padrão dessa fonte de “linhas duplas” para a inscrição do nome da autora. Como as outras versões, esta também dá mais destaque à autora em vez do título das obras, como observável nos exemplares abaixo, retirados do site oficial da Editora Globo Livros:

Podemos pensar, ainda, nas diferentes versões publicadas por uma mesma editora, no caso, a HarperCollins. Tendo em mente as capas do box 1, compare-as com as capas das seguintes versões das obras de Christie:

  • Box Agatha Christie — Melhores histórias de Hercule Poirot (2018)

Trata-se de um box com dois livros em capa dura, em que cada livro é uma coletânea de obras da autora, totalizando 5 obras em 2 volumes, como observável abaixo. É evidente, pelo design do box, o destaque maior ao nome do mais famoso detetive criado por Christie, Hercule Poirot, em detrimento do nome da autora. Isso se deve, evidentemente, por ser o detetive o protagonista, o conceito por trás dessa coleção. Surpreendentemente, tanto o título das obras quanto sua autoria não são destacados nas capas dos volumes, sendo explicitados somente nas lombadas, isto é, na parte visível quando dentro do box. Deste modo, reserva-se ao design das capas ilustrações que fazem referência às obras contidas em cada volume.

  • Edições em capa dura (2020)

Em 2020, a Editora Harper Collins deu início ao lançamento de edições em capa dura de obras da Rainha do Crime, que, no entanto, não se vendem, a priori, como uma coleção, ao contrário dos outros dois boxes lançados pela editora. A falta de padronização das fontes de uma obra para outra também reforça essa ideia de não se venderem como coleção, apesar de serem, de fato, colecionáveis. As novas fontes escolhidas, que contam com algumas linhas mais grossas em pontos localizados, dão um ar mais pesado às obras.

Ademais, percebe-se, ao olhar para essas capas, uma tendência , talvez, ao movimento minimalista, uma vez que conta com ilustrações menores e mais simples, se comparadas com as outras edições. Por fim, destaco também aqui o destaque maior ao nome de autora de Agatha Christie, em detrimento do título das obras.

A seguir, a título de “menções honrosas” que não serão estudadas a fundo nesta publicação, cito as seguintes versões na esperança de um olhar mais atento do(a) leitor(a) às tipografias utilizadas e ao espaço que cada elemento ocupa nas capas:

Edições antigas de obras da autora, em inglês.
Capa de “Os quatro grandes”, lançada pela Editora HarperCollins em 2020.
Diferentes versões, em inglês e em português, de uma mesma obra, “Ordeal by innocence”, ou “Punição para a inocência”, em português, uma das obras favoritas de Christie.

Mas para além das diferentes capas para as suas obras, podemos pensar ainda na gestão da autoria de Christie após sua morte. Primeiramente, é preciso destacar esse fato: Agatha Christie está morta. Assim sendo, diferente de quando estava viva, ela não pode mais controlar as nuances assumidas na sua figura de autor, não pode mais se aproximar ou se afastar de determinada imagem construída pela mídia, não pode mais dialogar com os espaços associados produzidos sobre si ou suas obras. E esse era, podemos dizer, um dos maiores medos da autora: não conseguir controlar suas obras e as suas retomadas. Digo isso pois, de acordo com verbete da Wikipédia e com artigo no blog The pop cultist, Christie “preferia matar o seu personagem mais famoso para evitar publicações que ela não aprovaria, após a sua morte”, e, de fato, ela o fez. Hercule Poirot, o famoso detetive belga com quem a autora tinha uma relação de ódio e ódio (ou ódio e necessidade dele para pagar as contas), teve seu grande fim em “Curtain” — ou “Cai o pano - O último caso de Poirot”, na versão brasileira —, obra escrita na década de 1940 mas publicada apenas em 1975, pouco antes da morte da autora. A morte do icônico detetive chamou tanta atenção que ele recebeu até um espaço no obituário do jornal estadunidense The New York Times.

Entretanto, apesar da vontade da Rainha do Crime de decretar o fim de Poirot, em 2014 a Editora HarperCollins publicou “The Monogram Murders” (“Os crimes do monograma”, em português), de Sophie Hannah, a primeira continuação aprovada pela família de Christie. De acordo com a Agatha Christie Limited, atual gestora da carreira (póstuma, sempre bom lembrar!) de Christie (negociando novas publicações, obras cinematográficas, jogos, produções digitais, eventos e até mesmo produtos licenciados), a obra de Hannah, que traz à vida um novo caso de Poirot, foi um “fenômeno global, publicado simultaneamente em 16 países. No total, 34 territórios publicaram o romance, em mais de 50 idiomas. Ele alcançou o top 10 bestsellers em 14 países” (tradução minha).

Devido ao enorme sucesso desse primeiro lançamento, seguiram-se outros: “Caixão fechado” (2016), “O Mistério dos Três Quartos” (2018) e “Os assassinatos em Kingfisher Hill” (2020), todos autorizados pela família de Agatha Christie.

Um ponto já citado em postagem anterior foi as capas das novas obras de Sophie Hannah, que, como observável abaixo, filiam-se explicitamente ao legado da Rainha do Crime:

Além disso, podemos pensar também a sintaxe de “Agatha Christie, por Sophie Hannah”, como se a autoria das novas obras fossem de Christie, mas realizadas sob as mãos de Hannah, como se esta última tivesse, porventura, psicografado uma obra ditada pela primeira. Ademais, podemos retomar questões abertas em outra postagem a fim de tentar respondê-las:

“quem é Sophie Hannah para ser publicada sob o nome da Rainha do Crime?”, “com que direito Sophie Hannah, ou seu agente literário ou editora, reivindica o uso do nome da Rainha do Crime?”, “Sophie Hannah conseguirá lidar com o peso que é carregar o nome da Agatha Christie?”, “Sophie Hannah realmente conseguirá fazer jus ao nome da Rainha do Crime ou acabará por ‘maculá-lo’?”.

  • Quem é Sophie Hannah para ser publicada sob o nome da Rainha do Crime?

Em uma rápida pesquisa no Google Search, encontramos a entrada da Wikipédia sobre a autora (ato que já evidencia certa consagração), que diz:

Sophie Hannah (Manchester, 1971) é uma poetisa e romancista britânica. De 1997 a 1999, foi bolsista em Artes Criativas na Trinity College, Cambridge e entre 1999 e 2001, pesquisadora na Wolfson College, Oxford.

[…]

Embora seja a autora dum livro para crianças, ela é mais conhecida pelos seus romances de crimes psicológicos. O seu primeiro romance, Little Face, foi publicado em 2006 e vendeu mais de 100.000 cópias. O seu quinto romance criminal, Lasting Damage, foi publicado no Reino Unido em 17 de fevereiro de 2011. Kind of Cruel, o seu sétimo suspense psicológico, introduzindo os personagens Simon Waterhouse e Charlie Zailer, foi publicado em 2012.

The Point of Rescue, o seu romance de 2008 foi produzido para a TV como drama de duas partes Case Sensitive e exibido em 2 e 3 de maio de 2011 na rede ITV do Reino Unido. É atuado por Olivia Williams no papel principal de DS Charlie Zailer e Darren Boyd como DC Simon Waterhouse. Logo na primeira exibição teve 5,4 milhões de espectadores. Nos dias 12 e 13 de julho de 2012, foi exibida uma segunda história em duas partes, baseada em As Outras Meias Vidas.

Dados os números apresentados, vemos que trata-se de uma autora minimamente consagrada antes mesmo de envolver-se com a produção de novas obras de Christie. Não se tratou, assim, da escolha de uma autora completamente desconhecida (ou mesmo de algum familiar ou descendente da autora, ato comum no meio) para carregar o peso que é o nome da Rainha do Crime.

  • Com que direito Sophie Hannah, ou seu agente literário ou editora, reivindica o uso do nome da Rainha do Crime?

Essa pergunta já foi, de certa forma, respondida ao longo das análises: Hannah reivindica o uso do nome de Christie devidamente autorizada pela família desta.

  • Sophie Hannah conseguirá lidar com o peso que é carregar o nome da Agatha Christie? Ela realmente conseguirá fazer jus ao nome da Rainha do Crime ou acabará por ‘maculá-lo’?

Essa questão também já foi respondida se considerarmos o sucesso de vendas do primeiro livro, que encadeou a publicação de outras 3 obras subsequentes de Hannah sob o nome de Christie. Além disso, a crítica não mente. O site Agatha Christie Limited traz alguns comentários dos mais famosos jornais e periódicos literários:

  1. Sobre “Os crimes do monograma”:

“A brilliant new murder mystery which picks up where the grande dame of crime left off”.
_Mail on Sunday

“Does Sophie Hannah’s Poirot live up to our expectations? Yes, he does, and markedly so”.
_New York Times

2. Sobre “Caixão fechado”:

“This is a literary marriage made in heaven — Sophie Hannah and Agatha Christie”.
_The Times, October 2016

“An absolute gem for murder mystery fans”.
_Closer Magazine, September 2016

“…it has an intellectual coherence that Christie herself would probably have enjoyed…”
_The Spectator, September 2016

3. Sobre “Os assassinatos em Kingfisher Hill”:

Bestseller Hannah displays her superior ability to devise mind-blowing setups in her fourth authorized continuation of Agatha Christie’s Hercule Poirot series.
_Publishers Weekly

Para finalizar (juro que estou acabando!), devemos falar a seguir sobre a paratopia criadora: para o linguista francês Dominique Maingueneau (2006), a autoria não é estável, mas é construída e gerida a todo momento a partir das relações entre 3 instâncias, as instâncias “pessoa”, “escritor” e “inscritor”.

Em breves linhas, podemos dizer que tais instâncias se relacionam aos aspectos que formam um autor: a instância ‘pessoa’ se refere a um indivíduo no mundo, dotado de estado civil, como um membro de um grupo social; a instância ‘escritor’ designa o ator que define sua trajetória na instituição literária e se refere ao ‘modo de difusão’ da obra, e a instância ‘inscritor’ se refere ao sujeito da enunciação, englobando os ritos genéticos, incluindo tudo o que um autor mobiliza para construir sua obra, inclusive os ritos propriamente editoriais (SALGADO; DORETTO, 2018, p. 5).

Não me demorarei aqui na análise da paratopia criadora de Agatha Christie (já me dediquei a atividade semelhante quando me propus a fazer uma breve análise da paratopia criadora dos integrantes do BTS). Dadas as informações analisadas nesta postagem, acredito ser evidente o fato de a instância “escritor” de Christie ser a mais retomada. Esse fato pode ser comprovado, inclusive e principalmente, pela disposição das capas de suas obras, uma vez que, como vimos, destacam mais o nome da autora que o nome da obra. Assim, a obra (instância “inscritor”) tem uma importância secundária na constituição da autoria de Christie. Por fim, a instância “pessoa”, apesar de ser também muito retomada (principalmente quando falam do divórcio da autora em 1926 e o consequente desaparecimento de Christie por cerca de 15 dias), é a instância de menor destaque na autoria de Christie. Temos, com isso, o seguinte nó borromeano da figura de autor de Agatha Christie:

Nó borromeano da autoria de Agatha Christie.

Finalizo, com isso, esta análise que se estendeu além do pretendido.

Até breve!

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina optativa “Discurso literário: criação, edição e consumo”, ministrada por Luciana Salazar Salgado.

Referências bibliográficas:

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo, SP: Contexto, 2006.

SALGADO, Luciana Salazar; DORETTO, Vitória Ferreira. Implicações entre mídium e paratopia criadora: um caso de autoria exponencial. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 40(2), e40988, 2018. Disponível em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/view/40988>. Acesso em: 12 nov. 2020.

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Karen Naomi Aisawa

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