Os programas de premiação musical sul-coreanos

Karen Naomi Aisawa
5 min readNov 15, 2020

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O tema de reflexões desta semana foi os prêmios literários e sua relação com o mercado editorial e, mais amplamente, com a política nacional brasileira. Assim, como de costume, me peguei transpondo de forma análoga muito do que foi dito sobre as premiações literárias para o mundo do entretenimento e, mais especificamente, dos shows de premiação musical sul-coreana, que têm papel essencial na constituição do campo musical do país.

Vamos começar entendendo, primeiramente, como era o cenário musical da Coreia do Sul:

Após a rendição das tropas japonesas e o consequente término da Segunda Guerra Mundial em 1945, a Coreia viu-se livre do domínio imperial japonês. Dividido entre a política capitalista dos Estados Unidos e o sistema socialista da União Soviética, o país terminou por ser segmentado em República Popular Democrática da Coreia e República da Coreia (respectivamente, Coreia do Norte e Coreia do Sul) na batalha que ficou conhecida como Guerra da Coreia (1950–1953). Devastada pelos sucessivos confrontos, a Coreia do Sul, que adotou o sistema capitalista, viu-se imersa na pobreza e, em uma tentativa de expandir sua economia, o governo investiu fortemente nos chaebol, isto é, nos grandes conglomerados industriais subordinados a uma empresa-mãe (geralmente controlados por famílias ricas), como a Samsung e a LG, por exemplo.

Uma vez estabilizada a economia do país, o governo sul coreano passou a investir na área da cultura, incentivando, em um primeiro momento, a indústria cinematográfica e, posteriormente, a indústria do entretenimento. Na época, a música coreana centrava-se basicamente em dois estilos, as baladas coreanas e o ppongjjak, ambos tidos pelos jovens como músicas da geração mais velha. Como relata Shim,

Em geral, o mercado da música pop coreana não era vibrante antes dos anos 1990. Os jovens coreanos preferiam músicas pop americanas às locais; os shows ao vivo não eram comuns e, quando ocorriam, eram em pequena escala. De fato, as duas redes públicas de televisão, a Korea Broadcasting System (KBS) e Munhwa Broadcasting Company (MBC), controlavam a distribuição de músicas e dominavam a administração desse consumo. Não havia uma tabela autorizada de vendas de discos, exceto os programas semanais na televisão, que serviam como o único critério pelo qual canções e artistas eram considerados populares, e pelo qual o público decidia quais álbuns deveria comprar (2011, p. 11, grifo nosso, tradução nossa).

Interessa-nos aqui, em especial, a parte final da fala de Shim, sobre os programas semanais de música, também conhecidos como music shows. Tratam-se de

programas musicais nos quais cantores solo e grupos vão para promover seus lançamentos recentes e, através de uma série de critérios [que variam de programa para programa], concorrer a um título e troféu simbólicos a cada transmissão. […] Cada uma das grandes redes de transmissão coreanas tem seu próprio music show, sendo eles, atualmente: Music Bank, Inkigayo, M Countdown, Show! Music Core, Show Champion e The Show (Revista KoreaIn, 2016, grifos originais).

Assim, como evidenciado por Shim, tais programas têm como função principal atuar como um instrumento de legitimação: as grandes redes de transmissão do país, proprietárias e coordenadoras dos programas, atuam como uma instância julgadora, que tem competência, poder e autoridade para designar o valor de cada canção, recomendando ao público profano o que deve e o que merece ser ouvido. Nesse sentido, as premiações legitimam não só as músicas e os artistas, mas também a si próprios e aos seus organizadores, uma vez que, como destacou o prof. Haroldo*, “poder premiar é tão ou mais importante que ser premiado”.

Veja então como organizar uma premiação ou integrar seu júri é, por si só, um ato de instauração e reivindicação de uma posição num campo, pois, ainda conforme o professor, o mercado não monta prêmios utilizando-se apenas de critérios do mercado (como o número de vendas, por exemplo), porque senão ele não se legitima: não tem graça premiar aquele que vendeu mais. Isso é evidente, inclusive, nos critérios de avaliação das músicas que, apesar de variarem de programa a programa, tomam como base não apenas as vendas (digitais e/ou físicas) de álbuns, mas também a opinião pública, decidida por meio de votação.

Acrescente-se a essa discussão o fato de que “Para que uma autoridade literária ou autoral seja legítima e eficiente, é preciso que nós possamos crer nela e acreditar que precisamos dela” (DUCAS, 2019). Deste modo, não há premiação se não há credibilidade nela, na organização que a representa, no júri que avalia, nos critérios que considera.

Assim, considerando a definição de “prêmio literário” de Zilberman (2017, p. 1) reproduzida abaixo, podemos pensar também os music shows sul-coreanos como estímulos para o desenvolvimento do campo musical do país, favorecendo os artistas ao divulgar suas canções para o público e, apesar de não contar com premiação em dinheiro, colaboram também para o crescimento das vendas dos álbuns vencedores e para conferir visibilidade às empresas e gravadoras que gerenciam os artistas e lançam suas músicas, orientando, deste modo, os ouvintes a prestarem atenção às canções e artistas avaliados positivamente por um seleto grupo credenciado.

Prêmios literários podem ser um excelente estímulo para o desenvolvimento de uma literatura nacional. Favorecem os escritores, ao divulgar sua obra entre o público não especializado, colaborando também para a conquista de autonomia financeira, em decorrência do valor do prêmio, se esse for pago em dinheiro, e do crescimento das vendas, das quais advêm direitos autorais. Cooperam também para conferir visibilidade a editoras que publicam os livros vencedores, e orientam os leitores, dirigindo-os para criações e criadores avaliados positivamente por um grupo credenciado de jurados.

Assim, retomando novamente a fala do prof. Haroldo, concluímos evidenciando o fato de que as premiações, sejam elas literárias ou não, não funcionam como uma instância de legitimação da qualidade das obras/músicas inscritas, mas funcionam como uma espécie de arena onde se encontram, disputam, batalham os atores de determinado campo.

Até breve!

*Em discussão levantada na aula do dia 11/11/2020 da disciplina “Literatura e mercado editorial”, oferecida pela UFSCar.

**Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.

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Karen Naomi Aisawa

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