Algo único e insubstituível

Karen Naomi Aisawa
4 min readSep 27, 2020

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Imagem promocional do jogo “BTS Universe Story”, parte da narrativa transmídia “BTS Universe”.

Quando falamos em mercadoria, geralmente pensamos em produtos alimentícios, jogos, móveis e eletrodomésticos. No caso destes últimos, em geral, produzidos e montados em linhas de produção nas fábricas, tratam-se de artigos que carregam valor exclusivamente econômico. Entretanto, um item essencial nos acompanha no dia a dia e, ainda assim, escapa totalmente à ideia comercial, econômica: o livro. Este objeto, portador de significativo valor simbólico e cultuado pela sociedade, é produto do discurso literário que, como já vimos na publicação anterior, trata-se um discurso constituinte, um discurso que se coloca como primeiro, originário e, portanto, de valor e autoridade inquestionáveis. É, assim, um objeto consagrado e consagrador: é a publicação de um livro em formato códice que efetivamente legitima um(a) autor(a), mesmo que ele(a) já tenha milhares de leituras e/ou visualizações nas plataformas de autopublicação, como mostrado por Chieregatti (2018).

Essa reificação do objeto livro é, inclusive, pautada na separação entre a vida do indivíduo e a expressão cultural materializada nas páginas, um mundo novo acessível ao leitor apenas durante o momento da leitura, mediante rituais da entrada e saída desse lugar que é capaz de suspender o tempo-espaço ordinário e sobrepor, em si, espaços vários que por si só seriam incompatíveis. Assim, retomando o conceito de heterotopia de Foucault, apresentada em nossa primeira publicação, podemos dizer que o livro, por todas essas características mencionadas, constitui, ou ao menos projeta, uma heterotopia.

Entretanto, apesar do discurso literário recusar o status mercadológico, dele não pode se desassociar, uma vez que o livro é, como todos os objetos, uma mercadoria e, como tal, integra o sistema literário. De acordo com Bourdieu (2018), é um material de dupla face, pois carrega, em si, tanto valor simbólico como valor econômico. Contudo, como evidenciou o prof. Haroldo Ceravolo Sereza*, é também uma mercadoria diferente das outras, no sentido de que, diferentemente de produtos como o molho de tomate, que pode ser satisfatoriamente substituído por outra marca na ausência da desejada, um livro esgotado não pode ser substituído satisfatoriamente por outro, nem mesmo se for do mesmo autor ou tiver a mesma temática.

Pensando nessa questão, retomamos aqui, novamente, nosso objeto de pesquisa, o BTS Universe, apresentado na publicação anterior. Refletindo sobre os diversos materiais que o compõem, percebemos que todos eles possuem essa mesma característica individual e insubstituível dos livros, fatores indispensáveis para o sucesso das narrativas transmídia, uma vez que, como dissemos, trata-se de uma espécie de narrativa quebra-cabeça, na qual cada um dos materiais atua como uma peça de valor insubstituível que deve ser conectada a outra para fazer sentido. É um tipo de storytelling que deve ser pensado estrategicamente, nos mínimos detalhes, de modo que a divisão da narrativa em “peças” deve ser feita de forma que cada uma delas contribua de maneira distinta e valiosa para o todo desse universo expandido. Podemos citar, como exemplo, as short stories (histórias curtas), pequenos textos que simulam notas do diário das personagens: inicialmente publicadas no Instagram e no Twitter, as notas são postadas em forma de imagens (e não texto corrido) com a inscrição 花樣年華 The Notes (traduzida, em inglês, para The most beautiful moment in life The Notes) e o logotipo do BTS Universe, certificando-as como conteúdos oficiais da narrativa.

A primeira nota publicada.

Posteriormente, algumas dessas notas foram incorporadas em pequenos cadernos que acompanham alguns álbuns do BTS, tal como na imagem abaixo, por @fairykoya:

Esses cadernos, por sua vez, também foram compilados em forma de livro, o 花樣年華 THE NOTES 1 (no inglês, The most beautiful moment in life THE NOTES 1), observável na imagem abaixo:

Considerando essa primeira nota, publicada no Twitter e Instagram, cuja tradução em português pode ser conferida abaixo, constatamos que ela foi incorporada, com algumas alterações (desconsiderar diferenças quanto aos termos, provenientes de tradução por pessoas diferentes), ao livro THE NOTES 1, como reproduzida logo em seguida:

Tradução por @BTSNoticia

Comparando as duas versões, percebemos que, apesar de serem materiais muito similares em conteúdo, eles nunca serão idênticos de fato, pois a repetição de conteúdo, ou melhor, a ausência de novas informações à história, diminui a curiosidade dos fãs, que perdem o interesse na narrativa, levando, consequentemente, ao fracasso da franquia, uma vez que, como já mencionamos no post anterior, a eles cabe o papel de coleta e reorganização dos materiais, ato que compõe o universo narrativo de fato.

O caráter individual e insubstituível dos livros é, assim, análogo ao dos materiais que compõem uma narrativa transmídia, que são, entretanto, dotados de outra característica fundamental: a complementaridade entre seus diversos conteúdos.

Com isso, finalizamos mais uma reflexão!

Até a próxima!

*Em discussão levantada na aula do dia 16/09/2020, da disciplina “Literatura e mercado editorial”, oferecida pela UFSCar.

**Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.

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Karen Naomi Aisawa

Olá! Seja muito bem-vindo(a)! Neste perfil trago algumas reflexões provenientes de disciplinas do curso de bacharelado em Linguística de que participo(ei).