A produção do ethos discursivo a partir de entrevistas com editores literários

Karen Naomi Aisawa
10 min readOct 25, 2020

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Diagrama do Ethos discursivo, por Maingueneau (2008)

Nestas últimas duas semanas, participei de discussões muito produtivas acerca da noção de ethos discursivo, conceito que possui origens na Retórica de Aristóteles, e resolvi trazer essa discussão para a postagem da semana (atrasada, eu sei, mas vou tentar fazer valer a pena). Para Aristóteles, o ethos retórico diz respeito a um bem falar, a modos de agir e de se portar a fim de convencer um público, encantá-lo (um conceito do qual as técnicas de encantamento de clientes do Marketing são um refinamento). Trata-se, enfim, de atitudes tomadas por um locutor, conscientemente ou não, de modo a criar uma imagem de si para a audiência em um esforço de criar identificação, confiança, adesão, enfim, de mostrar pertencer a uma determinada comunidade discursiva comum a seus interlocutores, independente de realmente pertencer a ela ou não — afinal, como bem pontua Guy Debord em sua obra A sociedade do espetáculo, ao longo da história tem-se uma passagem da valorização do “ser” para o “ter” e, por fim, para o “parecer”. Assim, o importante não é mais “ser bom ou mal”, “ter ou não bens”, mas sim, “parecer ser bom, parecer ter bens”…

Essa preocupação com a imagem de si era, à época, extremamente importante, uma vez que a política grega se assentava nas ágoras, praças públicas onde se reuniam os cidadãos para discutirem os próximos passos do governo. Tal decisão era tomada, assim, a partir de debates entre os indivíduos (e não quaisquer indivíduos, vale lembrar, mas homens adultos livres nascidos em solo ateniense) para determinar quem possuía os melhores argumentos, quem convencia mais com seu ethos.

Foi então que, em sua obra seminal intitulada A propósito do ethos (2008), Dominique Maingueneau define o conceito de ethos discursivo, uma ampliação da noção original de Aristóteles, que passa então a designar a sensação materialmente produzida que os textos dão. Assim, o novo conceito não se limita mais ao meio exclusivamente falado, recobrindo também o meio escrito: tem a ver com o tom e a corporeidade evocados pelo texto. A esse ethos evocado ele chama ethos efetivo, que engloba dois tipos: o ethos pré-discursivo (que diz respeito às impressões pré-concebidas que um interlocutor tem do locutor, antes mesmo que este enuncie) e o ethos discursivo (este sim, concebido e/ou atualizado a partir da enunciação do locutor). Entretanto, este último se divide, ainda, em outros dois conceitos: o ethos dito (que diz respeito às características próprias do locutor explicitadas em sua própria enunciação) e o ethos mostrado (que é construído mesmo que inconscientemente pelo locutor). Ao contrário do ethos mostrado, o ethos dito é opcional, nem sempre evidenciado no texto, talvez pelos riscos que apresenta, uma vez que é preciso destreza ao falar de si mesmo: não se pode se elogiar demais e nem se rebaixar demais, pois pode passar uma imagem arrogante ou incapaz, por exemplo.

E esses ethé produzidos se assentam, assim, nos mundos éticos, isto é, nos estereótipos, nas cenas validadas cultivadas em determinada comunidade discursiva, dizem respeito, enfim, ao nível fundamental de conhecimento comum que sustenta a produção de determinado objeto técnico (e são esses objetos técnicos que produzem o ethos).

Passando para a prática, me peguei pensando muito na construção do ethos dos editores entrevistados pela Cândido (jornal da biblioteca pública do Paraná), três em especial, referentes à Isa Pessoa, ao Luiz Schwarcz e ao Eduardo Lacerda, leituras indicadas para uma das aulas da disciplina “Literatura e mercado editorial” de que estou participando. Interessa-me, aqui, fazer uma breve análise comparativa das três entrevistas utilizando-me da noção de ethos acima delineada.

Comecemos pela chamada (que, devido à sua reduzida extensão, vale ser copiada na íntegra):

  1. Isa Pessoa:

Pleno sucesso

Isa Pessoa relembra episódios importantes de sua carreira no mercado editorial, incluindo o período em que atuou como diretora da Objetiva, onde editou livros importantes como Pornopopéia, de Reinaldo Moraes, e best-sellers de Luis Fernando Verissimo e Paulo Coelho

2. Luiz Schwarcz:

“Somos menos provincianos que os editores americanos e ingleses”

O fundador da Companhia das Letras abre a série de entrevistas com editores brasileiros que o Cândido inicia a partir desta edição. No bate-papo com o escritor Bernardo Carvalho, Luiz Schwarcz, entre outros assuntos, fala sobre o início de sua editora e o atual momento do mercado editorial

3. Eduardo Lacerda:

Um estranho no ninho

Eduardo Lacerda conta sua saga à frente da Patuá, editora independente que em sete anos já publicou mais de 550 títulos, conquistou alguns dos principais prêmios literários do país e tem como ponto de venda um bar, idealizado pelo “faz-tudo” que já foi camelô, quis ser professor e aposta no sucesso de seus autores

Um primeiro ponto que merece destaque: enquanto o “título” das entrevistas de Pessoa e de Lacerda são descrições atribuídas aos dois por parte do entrevistador (e não necessariamente como eles se descreveriam, por exemplo), o de Schwarcz destaca uma fala do editor durante a entrevista, sinalizando, talvez, um interesse maior no que ele tem a dizer sobre o meio editorial brasileiro. Tem-se, deste modo, o destaque a diferentes autorias: nas entrevistas 1 e 3, destaca-se a autoria do entrevistador enquanto na entrevista 2 destaca-se a autoridade do entrevistado.

Apenas isso me faz levantar algumas hipóteses sobre o ethos a ser construído pelas entrevistas: destaca-se, no caso de Pessoa, sua carreira de sucesso, hipótese sustentada pelo lide logo abaixo, que menciona a edição de livros importantes e best-sellers; já no caso de Schwarcz, percebe-se um interesse maior em sua carreira como “dono de uma editora” e em sua opinião sobre o mercado editorial que em seus trabalhos como editor, de fato; por fim, evidencia-se, no caso de Lacerda, o caráter “independente” de sua editora e seus ideais, talvez, incomuns no meio editorial, sustentado pela descricão “um estranho no ninho”, que o coloca como integrante de um espaço ao qual não pertence totalmente, e mais: percebemos no lide a contraposição entre a “carreira de sucesso” de sua editora em oposição à sua antiga área de atuação profissional como “camelô”, que sustenta ainda mais seu caráter de “desvio” em relação à carreira de outros editores e editoras.

Um panorama geral das entrevistas:

Isa Pessoa:

Percebe-se o alto valor que a editora atribui ao livro impresso, menosprezando a leitura e literatura em ambientes digitais, evidenciado pelos trechos “O livro impresso ainda pode reconquistar os leitores perdidos” e “O livro eletrônico não decolou. Só para aquele leitor voraz, que quer chegar primeiro”.

Temos também a mobilização de um ethos dito no trecho “Daí a chegada de muitos jornalistas, que por ofício são pessoas versáteis”, no qual Pessoa atribui a si, de modo sutil, o caráter “versátil”, uma vez que é também uma “jornalista de formação”, como pontua em seguida. Constrói-se também uma imagem de uma editora que não segue com tanto afinco o mandamento “não cobiçarás o autor do próximo”, procurando criar projetos que “fizesse[m] sentido para o autor, que o seduzisse[m]”, como no caso de Luis Fernando Verissimo, em que “havia questões que não estavam bem satisfeitas entre autor e editor. Pintou a brecha, e nós entramos”.

Outro ponto que consideramos relevante destacar desta entrevista é o imaginário de livro como um objeto técnico duradouro, destinado à transmissão tal qual a entende Debray:

“O ato comunicacional seria, assim, o ato de transportar uma informação no espaço, enquanto a transmissão seria o ato de transportar uma informação no tempo” (2007, p.1 apud PINTO, 2018, p. 58).

Dado isso, percebemos , na resposta à questão “O que é um texto literário ruim?”, uma conexão do tipo livro bom = livro que dura (na memória), como observável em “[Texto literário ruim] É aquele que você esquece no dia seguinte”.

É importante pontuarmos também que o ethos produzido pela entrevista e pela textualização da entrevista pode não condizer verdadeira e necessariamente com o ethos do indivíduo. Temos, por exemplo, a pergunta “Por que a Objetiva deu certo?”, ao que Pessoa responde “Porque deu liga. Cresceu muito”. Aqui, percebemos a importância de uma boa textualização, pois seria muito diferente se fosse “Porque deu liga, cresceu muito…”, por exemplo. O ponto final após “Porque deu liga” passa a impressão de ser uma resposta “curta e grossa”, mal educada… O mesmo pode ser dito deste outro trecho, “As obras dele antes eram editadas de forma cronológica. Havia sempre uma edição especial de fim de ano, tipo o programa do Roberto Carlos. Normal. Eu também faria isso. Não tem nada de errado. Mas como tivemos a oportunidade de refazer tudo, não íamos desperdiçá-la”, no qual se atenuaria o tom da editora se textualizado como “As obras dele antes eram editadas de forma cronológica, havia sempre uma edição especial de fim de ano, tipo o programa do Roberto Carlos. Normal, eu também faria isso, não tem nada de errado. Mas como tivemos a oportunidade de refazer tudo, não íamos desperdiçá-la”. Uma mera troca de pontos finais por vírgulas já é suficiente para atenuar essa imagem autoritária de Pessoa (que pode ou não corresponder à realidade) construída pelo entrevistador.

Por fim, acho interessante destacar o questionamento da editora sobre a categorização dos livro de colorir: “Só não entendo por que eles entravam na lista dos mais vendidos como não ficção. Não ler nenhuma palavra impressa é não ficção? É do mesmo gênero ao qual pertence o Gay Talese?” (grifo meu). Fica a reflexão…

Luiz Schwarcz:

Comparada à entrevista de Isa Pessoa, estritamente profissional, a de Luiz Schwarcz é um pouco mais pessoal, com perguntas mais emocionais, como “O que Rumo à estação Finlândia significava para você?” e “Que livro você escolheria para abrir uma editora hoje?”, por exemplo.

Ele também contrasta bastante com Pessoa no quesito opinião, por exemplo quando se mostra totalmente adepto do mandamento mencionado anteriormente, negando o comentário do entrevistador:

No início, a Companhia parecia não ter muito interesse por escritores brasileiros…

Tinha, sim. Mas eu também tinha ética suficiente e dinheiro insuficiente para sair por aí fazendo ofertas e tirando autores de outras editoras.

Ou mesmo quando se mostra otimista em relação ao cenário educacional do Brasil e aberto a novas tendências do mercado editorial, como observável no trecho “Muitas vezes, olhamos para isso com preconceito, mas não é necessariamente um fenômeno ruim. Por que uma lista de best-sellers menos literária significa que o país está mais ignorante? Pode até ser o contrário. Tem pessoas entrando no mercado mais cedo”.

Schwarcz também se mostra uma pessoa crítica e conhecedora do meio editorial, fazendo comentários localizados e, por vezes, irônicos, como descrito pelo entrevistador.

“O nosso projeto educacional ruiu quando o Brasil começou a enxugar os investimentos em educação, inicialmente por falência econômica e agora, com os novos governos, por falência de vocação.”

Por fim, gostaria de destacar também uma fala muito interessante quase ao fim da entrevista: quando perguntado “Você também escreve ficção. A experiência de escritor mudou a sua visão do que é ou deve ser um editor?”, Schwarcz responde “De alguma forma, me ajudou a compreender a fragilidade que é entregar um original, a posição de força que um editor tem, o quanto está em jogo emocionalmente na hora de divulgar um livro. Aprendi um pouco mais sobre a vaidade que está implícita no ato de transformar em público uma coisa na qual você trabalhou tão solitariamente” (grifo meu). Esta última sentença evidencia, para nós, o imaginário do autor como um indivíduo solitário, que escreve uma obra trancado em seu quarto e isolado do resto do mundo. Entretanto, uma obra é produto de várias mãos e mentes. Mesmo quando se pensa escrever sozinho, nunca o fazemos de fato, pois interagimos, em nosso interior, com vozes passadas que não são nossas, como por exemplo as falas que ouvimos, as leituras que fizemos, as coisas que vivenciamos…

Eduardo Lacerda:

Ao contrário das outras duas, vemos, antes da entrevista, uma descrição mais longa e detalhada sobre Lacerda e sua editora, a Patuá, bem como do bar Patuscada, que promove e vende os livros publicados pela editora. Talvez a introdução mais demorada se deveu ao fato de ser uma editora independente, geralmente tidas como pequenas e desconhecidas do público, mas é fato que essa delonga nos deixa mais próximos do entrevistado. Essa imagem mais íntima se sustenta, ainda, graças a trechos como “Edu, como é chamado […]” e “Lacerda bebeu três garrafas long neck de cerveja. Segundo ele, teria tomado dez se não fossem problemas de saúde — teve complicações por sua diabetes nos últimos meses — e Pricila Gunutzmann, com quem casou em 2017 sob a condição de que cuidasse de sua disposição física”, que nos dão a sensação de estar lá no bar ouvindo as confissões e desabafos do editor.

Esse ethos íntimo associado a Lacerda é sustentado também pelas decisões editoriais tomadas pelo jornal, como por exemplo, a decisão de manter o uso de termos como “porra”, “porrada” e “cara”, gírias da fala coloquial, em vez de retirá-los ou substitui-los por outros. Tal movimento evoca, assim, a cenografia de uma conversa acalorada, com um amigo próximo.

Por fim, pontuamos que esse ethos amistoso parece ser próprio de Lacerda, uma vez que inclui em suas respostas fatos de sua vida pessoal, como por exemplo o fato de que

Meu pai tinha uma loja na região da [rua] 25 de Março [tradicional ponto de comércio popular no centro de São Paulo], de bijuteria e papelaria. E faliu. Ficou devendo para um agiota um valor altíssimo, hoje daria mais de R$ 1 milhão. E ele ficou desesperado. Eu estava no segundo mês de uma faculdade particular, a São Judas. Aí fui trabalhar de camelô durante 6 meses. Ele tinha os produtos já comprados.

Com isso, concluímos esta breve e modesta análise acerca do ethos produzido pelos entrevistados e também do ethos produzido pelo jornal através de sua textualização da entrevista, que evidenciam uma gradação da informalidade e proximidade dos entrevistados com os entrevistadores, resultando, afinal, nas entrevistas de Isa Pessoa e de Eduardo Lacerda como dois extremos dessa escala, mais profissional e mais pessoal, respectivamente, e com a entrevista de Luiz Schwarcz como um ponto intermediário dessa transição.

Até breve!

*Reflexões provenientes de discussões da disciplina de pós-graduação “Literatura e mercado editorial”, ministrada por Luciana Salazar Salgado e Haroldo Ceravolo Sereza.

Referências bibliográficas:

DEBRAY, Régis. Transmitir o segredo e a força das ideias. Trad. Guilherme João de Freitas. Petrópolis: Vozes, 2000.

PINTO, Pedro Alberto Ribeiro. O Voar e o Cantar do Clube Atlético Passarinheiro: Mídium e Gestão da Paratopia Criadora. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2018.

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